Fã ou “hater”? Pergunta-síntese da dinâmica virtual, a questão embute uma dualidade a partir da qual se organizam as vidas nas redes e para além delas, ou seja, uma troca que se dá em torno de um binarismo cujos pontos cardeais são, de um lado, o apoio incondicional (fã) e, do outro, o ódio cego (“hater”).
Do amigo, do colega de trabalho e até mesmo das relações amorosas, exige-se hoje em dia essa espécie de contrapartida afetiva que prevê um vínculo sem arestas, feito todo com base numa adesão total que não aceita dissidência nem o mais remoto traço de crítica.
“Meu (minha) namorado (a) não é apenas meu (minha) namorado (a), mas meu (minha) fã.”
É-se fã de alguém como se é fã do Barcelona, de bolo de milho ou da Anitta, não havendo espaço para sentimentos conflitantes. O conflito, por si, é negativo, contraproducente e, sob o ponto de vista da gestão dos afetos, algo a ser evitado porque desorganiza o empreendimento social do qual se é sócio-majoritário e figura pública, como um CEO do próprio ego e marqueteiro das próprias qualidades.
Não é por acaso que a palavra, antes limitada para se referir a um artista, clube de futebol ou qualquer outra entidade diante da qual uma pessoa se toma da mais absoluta devoção, tenha agora passado também a designar uma troca amical ou amorosa.
Ora, o “fã”, no sentido corrente, não é mero namorado ou namorada, amigo ou amiga, mas alguém cuja entrega a esse outro se opera sem condicionantes, convertendo o alvo de seus sentimentos em objeto de adoração e centro de um culto privado.
Que outra modalidade também mobiliza esse excesso de positividade? O mercado. Especificamente, a compra de “experiências”, materializada em séries, filmes, livros e demais produtos cujo marketing consiste exatamente na posse de “algo mais” pelo qual se paga sem levar de fato, como nessas promoções de sabão.
A gramática gerencial-amorosa também descobriu que, exatamente como se é fã de uma mercadoria (de uma marca de roupas, de um diretor, de uma banda), é possível ligar-se ao outro sob a mesma lógica e numa linguagem colonizada, o léxico transposto das prateleiras para a vida a dois.
E o “hater”?
Quando não é de fato um agente do ódio e “incel” a quem se deve repudiar e jogar no ostracismo, o “hater” é visto como aquilo que dificulta ou inviabiliza o fluxo dessa positividade, impedindo a mobilidade da corrente do bem e impondo paradas imprevistas na cadeia de boas energias de um fã para outro.
É, assim, tudo que atravanca a relação consumidor-objeto, um sabotador das totalidades vaidosas e um excomungado do fã-clubismo narcisista.
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