Pular para o conteúdo principal

A pedra caída

 

Tento apanhar o dia nas mãos. A filha sentada ao lado aguarda o fim, pergunta se já tenho um resultado, se terminei de trabalhar, faz cara de quem se contraria, em seguida finge dormir.

Invento uma desculpa, digo que falta pouco, mas não falta nada. Tudo já feito e tudo já dito, nada feito e nada dito.

Tento apanhar o dia, e não posso sequer pronunciá-lo. Não está a meu alcance inventariá-lo aqui, me deter na sua superfície, arrancar o dia à força e mostrá-lo a quem o queira ver, expor o dia e assim me sentir melhor porque é tão feio e agora não me pertence.

Queria exibi-lo, dizer o que fosse. O dia pesado, essas horas todas durante as quais pensei em tocar no assunto, mas não disse nada. Calei porque não convém falar sobre o dia, ainda que me pertencesse não diria muito, mas não me pertence esse tempo.

Depois andei à procura de livros naquele ambiente espaçoso e ultra-refrigerado de um lugar pelo qual não tenho simpatia, mas sem desejá-los de fato, sem querê-los realmente, o olhar saltando de lombada em lombada, desinteressado. Um fastio de tudo, do tumulto e do frio, do excesso e da histeria, do cheio e do vazio, das escadas e das cadeiras.

Adiar todos os compromissos, suspender o tempo e esperar num canto comendo pipoca.

Lembro de quando fui à serra. Tinha esperança de encontrar um fragmento do meteoro e trazê-lo comigo. Fomos a todos os cantos, mas nada, nem sinal de pedra caída do céu. A todo mundo que perguntava se tinham visto tais e tais pedaços rochosos despencando, a mesma resposta desencontrada. Todo mundo tinha visto alguma coisa, e ninguém tinha visto nada.

As pedras já estavam lá quando chegamos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d