Pular para o conteúdo principal

A torre

 

Apenas ontem percebi a torre espichada na orla, um olho de Sauron que se eleva a alturas hiperbólicas e de onde se pode acompanhar a vida de qualquer fortalezense, morador do Montese ou do Carlito, da Beira Mar ou do Joaquim Távora. O ponto mais alto da cidade é esse espinhaço de concreto cuja vizinhança não lhe faz sombra.

Em terra de pouca planta e onde árvore é mato, é triste olhar o bicho se esticando verticalmente, engordado com orgulho pelo olhar amatutado de quem passa e espia, o pescoço curvado a ver se consegue dar com o terraço. O último andar, aquele estágio mais distante da linha térrea, lá onde a bola em fenda de fogo varre a nossa terra-média.

Houve um tempo em que era o contrário, a vista abarcava o terreiro do vizinho, a curiosidade chegando ao quintal, onde a gente, ainda miúdo, caçava uma peça de roupa, um brinquedo, um cajueiro onde se trepar, uma qualquer diferença entre os nossos e os outros.

Os muros, mesmo os mais altinhos, eram transpostos com facilidade, as carreiras de caco de vidro ou de “pega-ladrão” não impediam a molecagem nem eram obstáculo à destreza da criança desocupada no oco do mundo, ali entre duas e três da tarde, essa hora em que o menino solto se faz capeta.

As famílias, por sua vez, monitoravam-se discretamente, a medir a progressão material dos outros, atentas às mínimas variações nas condições de vida de quem lhe fizesse companhia de muro, já que, nestes tempos, toda tentativa de separar era convite a entrar.

O muro era artifício fajuto, mais trampolim que anteparo. Esburacado e mal assentado, permitia e filtrava a vida alheia, que passava do lado de cá feito o filme, a diversão do mexerico, a fome de escrutinar o que os outros andavam a fazer na modorra das tardes.

Agora cada casa é enclave, uma fortificação ensimesmada, nada vazando nem dando a ver. O fosco e o temperado imperam, e as alturas estão aí para provar que a fuga não é para os lados, mas para cima.

Empoleirados, o filme-mudo se passa a muitos metros abaixo da perspectiva de quem se arranchou entre o nonagésimo e o centésimo andar, nas culminâncias da edificação, a geografia abrindo-se em leque, o mar encrespado muito adiante do nariz e o cangote lambido por todo o vento que passa, cada vez mais escasso para quem fica, cada vez mais abundante para quem se alteia.

Da sorveteria da esquina, sentado perto da estátua da índia, de vez em quando alguém se espanta que se façam prédios tão altos, que não haja no entorno uma coberta verde, que o bicho-gente se satisfaça com a vida tão estribada em cercados, delimitada e pré-moldada feito as pecinhas coloridas com que os mais novos montavam suas construções de brinquedo, sonhando sonhos que depois esquecemos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas