Pular para o conteúdo principal

Terreiro

 

De noite chove, e da casa de alpendre se vê apenas sombra. A luz projetada do poste amarelece o terreno em volta da casa, que tem feitio de coisa abandonada. Passamos por ela sem parar. Mas, à frente, tenho desejo de voltar, bater à porta e perguntar se há vivente ali ou apenas fantasma. Pedir uma cadeira e demorar ainda na fachada, observar o terreiro lavado d’água desde a madrugada, os bichos recolhidos ao poleiro, alguns no cercado.

Talvez visse a vó do outro lado, acenando como gosta de fazer nos sonhos, sem assustar. Porque já não me assusto com alma, não corro nem finjo incredulidade, não faço gesto de aperreio. Apenas vejo e estudo se quer auxílio e como posso servir-lhe, ou então ignoro, não tenho dívida com esse outro mundo.

Eu ficaria ali sentado, cheirando a terra, aspirando mais um bocado o céu da cidade. Estamos na serra, passamos incógnitos. Ninguém nos conhece nem nós a ninguém, de modo que avançamos feito essas sombras que atravessam a chapada, três sombras de perfil mais curvado.

Peço café, que vem na xícara, feito garapa, que é como gostamos de beber aqui. Reparo agora que há uma rede estendida no canto, talvez tenha tomado água. No sertão ninguém esquece uma rede fora de casa. Estranho aquilo.

Logo amanhece, e o resto de sono se mistura à imagem do alpendre mergulhado na luz da noite. Ainda me volto e vejo o que ficou, tenho a impressão de distinguir um vulto estirado na rede, mas sei que não é.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...