Pular para o conteúdo principal

Não é sobre isso


Curioso, procurei a origem da expressão “é sobre isso” e cheguei a uma ex-participante de BBB cujas frases eram arrematadas sempre da mesma maneira, ainda que nem sempre fizessem sentido, o que costumava acontecer com alguma frequência.

Ora, “é sobre isso” convida a pensar sobre o que de fato se trata a coisa em si, um nó sintático-semântico difícil de desatar. A ideia de que um objeto qualquer se defina com tanta clareza mais confunde do que esclarece. É, digamos, uma construção anti-hamletiana, que manda às favas o relativismo do “ser ou não ser”.

A coisa toda piora quando ao “é sobre isso” se agrega “e tá tudo bem”, que pressupõe que o interlocutor tenha entendido sobre o que é mesmo o “é sobre isso”. O problema é que, se você ficou preso no curto-circuito da primeira sentença, dificilmente tá tudo bem, principalmente quando não se entende o que pode estar bem.

Mas talvez o sucesso dessa coalhada literário-gramatical se deva justamente a isso, a certa vagueza conceitual, de modo que, agora, sim, se pode falar em algo como é sobre isso. Por se encaixar em qualquer situação e a propósito de qualquer assunto, em qualquer tempo e lugar, o é sobre isso é sempre apropriado, sempre bem-vindo. É sobre isso é a literatura dos novos tempos.

Numa conversa, então, a frase ajuda a fazer entender que se entendeu tudo, quando, em verdade, reinam a confusão e a cacofonia, e apenas uma parcela mínima de significado se reteve no juízo da gente. É confuso? Sim, mas é sobre isso, e tá tudo bem.

Ou nem sempre, mas mesmo o fato de que não se está bem o tempo inteiro pode parecer desimportante diante da questão mais crucial que é compreender a razão pela qual uma frase aparentemente simples se tornou bordão da geração Z. O que quer dizer o jovem quando diz que é sobre isso?

Mesmo depois de tanta pesquisa, continuei encafifado e vacilante entre muitos sentidos possíveis atribuídos ao mesmo significante que escapa entre os dedos, tal como um gato de Schrödinger vernacular cuja presença nunca é possível precisar.

É sobre isso, mas isso o quê? E tá tudo bem se refere a uma aceitação tácita de uma condição irrevogável ou é apenas um dar de ombros vertido para a linguagem Tiktoker?

Honestamente, eu não faço ideia, e as perguntas que tinha no começo se multiplicaram à medida que eu avançava na leitura e abria mais links de matérias e reportagens que se propunham a explicar a real intenção da frase da ex-BBB, mas logo perdiam o fio da meada. Foi então que concluí que o “é sobre isso” pode querer dizer exatamente o seu contrário, ou seja, não é sobre isso, e não tá tudo bem, ainda que seja e esteja.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d