As fotos estragaram depois da chuva, os rostos manchados, o mofo diluindo a cobertura cromática, tornando infamiliar o familiar. Estranho o rosto da mãe, do pai, dos tios. Quem era carregado no braço, quem se agachara na hora do retrato, quem aparecia ao fundo da imagem, em contraste, num alçapão da memória? Não sabemos mais. Nunca soubemos.
Peço o álbum pra mãe, que me devolve tudo com um gesto de afastamento, como quem entrega objeto pesado, sem serventia, um traste. A memória desfeita, malcuidada, o que eu faria com aqueles retalhos? Que tipo de história eu montaria?
Talvez restaurar o possível, dar vida ao que ainda tivesse condições. Não sei. Por muito tempo o álbum permaneceria ao lado da mesa de trabalho, junto a uma bíblia onde mãe anotara o nome do padre que me batizara, hora de nascimento, informações tão precisas quanto desnecessárias agora.
Páginas grudadas, cantos inteiramente desfeitos, um borrão todo, como um trabalho realizado a propósito de apagamento deliberado, intencional, e não o descuido que a mãe alegava. Esquecimento na hora de dormir, e os álbuns tinham restado do lado de fora, no quintal, onde pegaram chuva e sol por um dia inteiro. E, levados ao guarda-roupa, foi como colocar fermento nessa corrosão do tempo.
Restara pouca coisa, não tinha muita valia, chegou a me dizer ao telefone. Eu me perguntava por que, mesmo agora, eu tinha levado comigo esse relicário de falsidades, negativos sem positivo. Melhor ter me desfeito na primeira esquina, no monturo, em qualquer lugar. Mas o tinha agora, dele não me afastaria.
Entender os gestos é uma pretensão que não tenho. Quero apenas completar o rosto, como nos desenhos de criança, quando um tracejado intui uma forma, que nos cabe continuar, agora de punho próprio. Eu queria restituir o traço, mas isso me custaria refazer, e refazer é recriar a família. Torná-la viva do zero.
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