Pular para o conteúdo principal

Diálogos

 

Tenho sintomas gripais, digo a uma moradora do prédio, que assente com a cabeça, ela mesma também convalescente de uma gripe severa que a derrubou por cinco ou seis dias, não recorda agora, apenas que ficou isolada da família durante esse período no qual oscilou entre suspeita de Covid e H3N2, ou uma combinação de ambas.

No meu bloco todos adoecemos nas duas últimas semanas, pelos corredores uma sinfonia de tosses secas e gordas, o corpo emitindo sinais de que está sob ataque. Pais que contaminaram filhos que contaminaram mães que contaminaram avós.

Estive assim por mais de uma semana, pernas e braços açoitados, a cabeça como que pressionada por duas paredes fechadas contra mim, a vista turvada e o juízo pequeno, sem condições de leitura, inapto para qualquer atividade que não fosse o repouso.

Agora me sinto melhor, me recupero aos poucos, consigo ler e escrever. Antes achei que não voltaria, por alguma razão a doença havia me privado dessa competência, eu teria de inventar outra atividade, outra profissão. Esta, não. Eu tinha sido condenado.

Homens doentes são sempre os piores, dizia a mãe, que nunca se queixa quando adoece. Tudo está bem, mesmo quando tem febre. Lembro do pai esmorecido se uma friagem o tomasse. No geral é assim, caímos ao menor contágio.

Nos piores dias pensei que não iria melhorar, que a vida de agora em diante seria assim, enclausurado, movendo-me lentamente, imprestável para qualquer coisa que não fosse estar deitado vendo séries de TV por horas. Os pensamentos deslocando-se em marcha lenta, sem formar frases completas.

Quando dormia, sonhava com os enredos das séries, sobretudo uma cuja história narra um apocalipse causado por uma... gripe. Nela uma trupe de atores e atrizes resiste ao apagamento da memória e da civilização encenando Shakespeare em pequenos ajuntamentos de pessoas que sobreviveram à praga.

Ainda estou decidindo se gostei, se não gostei, mas, de modo geral, é estranho viver algo e vê-lo tematizado numa obra de arte ao mesmo tempo. Causa uma sensação de desrrealidade, de esvaziamento da vida, e, por outro lado, lhe confere um grau de verossimilhança assustador.

Agora preciso encerrar bruscamente aqui.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d