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Cenas do supermercado

 

O que dizem aquelas cenas de supermercado? Pessoas se estapeando por um quilo de carne em promoção, o pacote atirado pelo vendedor desenhando um arco e caindo no chão, onde logo se formava um amontoado de gente do qual saía um vencedor. Empunhava a carne como quem ergue um cetro mágico, acima da linha das cabeças dos outros. Uma vitória, sem dúvida.

É como os bambolins da escola, só que com adultos e produtos perecíveis. Nada de bombom ou chiclete, agora é alimento que está em disputa, o empurra-empurra é pela sobrevivência. Quem está ali não quer matar o tempo, criar fantasias. Quer levar comida pra casa.

Nunca tinha entrado num supermercado em desmonte. Nunca entrei, na verdade, porque vi as cenas apenas pelos jornais, que noticiaram o alvoroço como coisa corriqueira. Tomam por natural o que é de fazer cair o queixo.

A pilhagem começou porque a loja está sendo fechada. Outro supermercado vai abrir numa área nobre, ele me disse uns meses atrás, quando as prateleiras ainda não estavam reviradas, apenas alguns itens não estavam mais disponíveis. Celulares, por exemplo.

Não havia nenhum, era bom procurar noutra unidade, ali os telefones tinham acabado rápido por causa da promoção. Depois foram as TVs, as menores e as de tela gigantescas. Também sumiram com rapidez, como se a tivessem levado de assalto. E assim tudo foi desaparecendo, desaparecendo.

Dos eletroeletrônicos, seguiram-se as roupas, os não perecíveis, os brinquedos, os itens de cozinha e, finalmente, os produtos mais buscados naquele tempo de crise: carne, ovos etc.

Aquele momento era o estertor da filial da loja, o último instante antes do desaparecimento. Os corredores apinhados de caixas de papelão e produtos jogados ao chão, remexidos, alguns abertos, outros simplesmente deixados ali, como detergentes.

Cenário de série pós-apocalíptica. De tanto vermos, quando vemos de fato aquilo não parece tão assustador. É apenas a materialização de uma imagem já conhecida.

Mais à frente, perto da fileira de caixas, agora cabines vazias, um homem de camisa vermelha e calça azul pescava os pacotes de carne sem sequer olhar preço ou validade. Como um desses trabalhadores que arremessam tijolos na construção de um muro, ele simplesmente os jogava para longe.

Apenas semanas atrás, ele talvez desfilasse de patins pelo linóleo branco da loja, repondo produtos que faltassem ou respondendo a alguma dúvida de um dos clientes.

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