Pular para o conteúdo principal

A primeira-dama

 

Vejo a cena mais uma vez. A primeira-dama aos saltos na sala repleta de gente, muitos sem máscara, persignando-se e agradecendo a Deus pela aprovação de um indicado do presidente para vaga de ministro da Suprema Corte, de cujos aspirantes a membro se exigem notório saber e reputação ilibada, nunca qualquer filiação religiosa.

Mas o vídeo sugere o oposto, que o ungido pelo chefe deve parte de sua escolha ao fato de que é evangélico. Mais que isso, que a aprovação é sinal de dádiva alcançada, de graça obtida, e não de cenário em que os interesses parlamentares de oposição e de situação convergem pragmaticamente para o mesmo ponto: o atendimento de pleitos comuns a qualquer senador eleito.

A primeira-dama então desanda a “falar em línguas”, que é um modo de tocar o espírito santo recorrendo à “gramática dos anjos”, num jorro desarticulado de sons que, aos que acreditam na mensagem, têm algum sentido cifrado.

Em seguida, dá alguns pulinhos e só depois abraça o ungido pelo Messias, já como novo ministro, mas ainda não empossado.

A câmera faz giro pela sala, revelando outros personagens. Alguns de cabeça baixa, em oração, outros observando a cena, assessores registrando tudo com o celular. Dois homens, a maioria no recinto, estão ajoelhados, enquanto a maior parte já se colocou de pé e cerca o escolhido, que chora.

A primeira-dama também está em lágrimas, envolve-o em abraço. Agora estão todos assim, formando um círculo. O ungido ergue o rosto e, para o teto da sala de paredes brancas e alguns quadros pendurados, diz palavras de agradecimento, algo como obrigado, que se misturam às aleluias e glórias da primeira-dama. Quero crer que é um anexo de gabinete parlamentar, no Congresso.

É uma cena de poucos segundos, talvez um minuto ou mais que isso, não tenho interesse em checar a duração dos acontecimentos, porque o tempo não interessa aqui. Não o tempo secular. Cumpre examinar outro tempo, o da política e o da religião, que se processa em décadas.

E é essa ideia de futuro em que cenas do tipo se tornem comuns que me faz pensar no pior. Vejo o vídeo mais uma vez, quero rir do comportamento da primeira-dama, mas sustenho o riso. Não há graça ali, nem ridículo, nem motivo para pilhéria. Tudo que se passa é muito sério, muito grave.

Esse talvez seja o problema. Ainda estamos vendo graça nisso tudo. Cremos que se trate de um esquete de humor, de uma “Zorra Total” ou uma “A praça é nossa”. Mas não é.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas