Pular para o conteúdo principal

Placas de cidade

 

Numa viagem gosto sempre desse momento em que se atravessa o portal de boas-vindas, a placa anunciando que, dali em diante, está-se lá, na cidade, que pode ser qualquer uma. Placas dessa natureza não se distinguem, são iguais, mudam-se os nomes, mas a mensagem é a mesma.

Talvez por isso tenha simpatia por elas, por essa tentativa algo ingênua de fazer supor que, apenas pelo poder da sugestão, vive-se num clima diferente porque, afinal de contas, estamos a atravessar essa cidade e não outra, então é como se o tempo se suspendesse.

E esse contínuo do deslocamento de uma viagem sertão adentro se corta, se interrompe, é feito de pequenas travessias por lugares em tudo iguais, principalmente nas placas.

Mas vejam como são bonitas, como carregam poesia nessa cafonice que é desejar que volte sempre, na espera de que o visitante, mal tendo passado, haja construído sobre o vilarejo uma impressão definitiva, marcante, de modo que da cidade sempre se lembrará e, mais que isso, dela sempre terá saudade.

Mas aí já vamos longe, a cidade ficou pra trás, a placa já não se vê, é apenas estrada se estendendo adiante e se perdendo, como se viajássemos sempre nos dois sentidos, para o porvir e para o passado, porque sempre cuidamos em nos desfazer do que acabamos de conseguir.

É a lógica da viagem, das placas de entrada e de saída, da paisagem em velocidade, o borrão verde e cinza das margens durante o dia e o negrume da noite sem foco de luz, exceto o pouco que o farol ilumina do asfalto e daqueles que vêm no sentido contrário, de repente um clarão que se confunde com uma nave espacial pousando brusca num alto do descampado.

Na última viagem até que não foi assim, quando voltávamos e tínhamos muito sono, eu alimentado com café porque tenho medo de dormir no carro, o motorista tomando energético, fomos surpreendidos por uma fogueira, que depois ganhou proporção, abarcando toda a margem esquerda.

Nunca tinha visto tanto fogo, o amarelo tão vivo da brasa se espalhar a partir de pequenos ninhos, uma fogueira provocada, certamente, e então pensei no ofício de atear fogo às plantas na alta madrugada, de reduzir a cinza e cotoco de pau o verde e as árvores.

Cogitei parar, mas como chegaria até o fogaréu e, chegando lá, o que faria? Como contar de tudo aquilo?

Passou então uma placa e, nela, a distância até Fortaleza. Faltava tanto, mas tanto, que pensei em dormir, mas, em vez disso, pus um forró pra tocar e fomos cantando até a cidade mais próxima, onde paramos pra jantar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d