Mesmo cansado, decido anotar uma ideia, que logo não me parece mais digna de qualquer atenção, de modo que a deixo de lado enquanto escrevo. E então o pensamento se volta a outro assunto, um tema que não aquele inicial, enredando-se no próprio rabo, cavoucando a razão pela qual julguei que seria interessante – necessário – escrever qualquer coisa que me fizesse esquecer o dia extenuante de trabalho e as pequenas dores de cabeça que marcam uma rotina de telefonemas e textos escritos a uma velocidade cujo andamento às vezes me impede de ler o que estou escrevendo, o que vai ali, como acontece agora.
Apenas depois de feito é que paro e me ponho a averiguar tudo, a pensar se de fato se trata disso ou daquilo, se estou bem, se considero tomar banho antes de dormir ou se, vencido pelas horas acumuladas, essas horas que pesam no corpo como dívidas numa caderneta de fiado ou como as orelhas penduradas no colar do coronel Kurtz, talvez seja preferível me jogar na cama desse jeito mesmo.
Sem me decidir entre uma coisa e outra, porém, delibero intimamente que farei alguma reflexão sobre o atual estado das coisas, sobre alguns assuntos anotados aqui no canto da página e em relação aos quais mantive uma distância diligente no correr da semana, quem sabe por receio de que qualquer um deles me fizesse cair num abismo, num buraco, numa fresta de outro mundo de onde eu teria dificuldades de voltar a esse outro universo, esse onde se passam os fatos mais ordinários em torno dos quais construo pequenos castelos que vão abaixo no dia seguinte, sem sobreviver a 24 horas de vida.
Uma observação: embora o tom seja amargo, acreditem, disso tudo extraio alguma graça. Mesmo depois de escrito e muito tempo passado, volto e vejo como essa coisa postiça que às vezes deixo passar no texto tem relação com uma postura de autoparódia, de zombaria com os planos que traço para mim mesmo, que tracei 20 anos ou 25 anos atrás, mas para os quais hoje não dou tanta bola assim, menos porque não os deseje, mais porque se mostram – alguns – inalcançáveis, e então eu os olhos com uma criança cujos pais a proibiram de entrar novamente na roda-gigante, que ficando para trás à medida que os portões do parque se fecham.
Novamente, parece amargo, mas é apenas pressa, cansaço e uma baixa disposição pessoal do indivíduo de 40 anos para encarar uma mesa de restaurante ou de bar num sábado qualquer no meio dessa Perestroika social que se tornou a vida pós-pandêmica.
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