Pular para o conteúdo principal

Apagão, tornados, vulcão: o fim do mundo

 

Enquanto escrevo sobre essa ideia de que o fim está perto, falências, explosões, tornados, fenômenos inexplicáveis, tempestades de areia, o surgimento de sinais que parecem bíblicos e remetem ao apocalipse, de repente entra uma mariposa no quarto através da janela aberta.

Passa das duas da manhã. A mariposa borboleteia e se desapruma em torno da lâmpada acesa, cai aos poucos, perde altitude exatamente como um avião em parafuso. É finalmente apanhada pelo gato, que havia se esgueirado sem que eu o tivesse visto e, no momento certo, deu o bote. Depois saiu com a mariposa na boca parecendo um longo bigode como o de Nietzsche.

Uma visão engraçada e triste, engraçada porque meu gato até hoje não havia capturado nada, mesmo uma barata mais lerda lhe escapa facilmente das garras. E triste porque era uma grande mariposa marrom, de asas farfalhantes e voo irresoluto, caótico, que desenhava no ar figuras geométricas nunca vistas, a primeira que entrara no quarto, quem sabe a última também.

E ela se foi, o gato comeu-a num instante. Parou de bater as asas no segundo seguinte ao do salto do animal, que agora mia na sala, talvez porque tenha descoberto que uma mariposa morta não lhe serve de nada, para comer ou brincar, e que o melhor teria sido deixá-la viva, voando pela casa, batendo-se contra os móveis e zanzando acima de sua cabeça, de modo que ele pudesse acompanhar seus movimentos encantatórios daqui de baixo, sem alcançá-la.

De volta ao texto que preparo, entendo tudo como mais um signo do fim próximo, da exaustão de certa ordem após a qual o mundo fica por conta própria e nós, a espécie dominante, nos despedimos até a próxima, dando adeus e fazendo votos de que em algum momento a gente tenha outra oportunidade de voltar a habitar este chão de terra, amém.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d