Pular para o conteúdo principal

Agenda

 

As primeiras agendas começam a chegar, livros cujas páginas devem ser preenchidas com os fatos do novo ano, num esforço de deixar para trás tudo que houve em 2021.

Embora crer que algo possa acontecer apenas pela razão de que sempre acontece seja um exercício de otimismo extremo que de alguma maneira não se encaixa nestes dias e mesmo os contraria, é exatamente o que fazemos: apostamos tudo na passagem esotérica das folhas, no salto mágico do número, na progressão irrefreável e positiva do tempo.

Separo uma delas, quero escrever meu nome, mas desisto porque ainda é cedo para fixar no papel qualquer plano relacionado a 2022, ainda que esse plano se esboce apenas no nome, na redução de tudo, no fragmento de que dispomos para existir.

Escrever o nome é um gesto que me parece agora excessivo, e não estou disposto a excessos, principalmente os mais entusiasmados, o nome figurando como placa de trânsito ou letreiro em neon na fachada da loja.

Penso então numa data, num dia qualquer ou numa frase que eu anotaria num canto de página, numa letra miúda que talvez apenas eu entendesse, de modo a instituir um marco a partir do qual eu decidi tornar aquela brochura um livro de registros de acontecimentos, banais ou não, reais ou não.

Mas também desisto, afinal, de que serve o número solto, vago, sem nada que lhe confira significado, um número que seria unicamente artifício, e de artifícios, sobretudo os literários, estou cheio, eu os afasto como quem recusa o prato cujo sabor é insuportável. Prefiro ocorrências da vida a fatos inventados, mesmo com episódios sem importância, o mero registro do processo da passagem, em linguagem não metafórica.

A placa do restaurante, o cardápio, o registro contábil das férias, o livro de ponto de uma empresa, a caderneta de fiado da bodega vizinha, retirado da gaveta a cada vez que um cliente chega, sempre os mais antigos.

Enfim, nada que se compare a nada.

A página da agenda fica em branco, solta, mas também não é problema, digo a mim mesmo, já que a recebi tem dois dias, e ainda posso pensar com paciência sobre o que fazer com elas. Não tenho pressa.

Porque são três agendas, três livros, um com capa preta, outro com capa branca e outro com capa transparente, de plástico, com desenhos e frases motivacionais cujo propósito, eu imagino, é inspirar quem a manuseie no dia a dia, um fraseado típico de agendas.

Ano passado escrevi num tipo assim, cheio de referências a fases da lua e outras bossas, elementos que, em tese, deveriam ser divertidos e fazer da tarefa de anotar e escrever algo como um passatempo, mas só a tornavam ainda mais difícil.

Na maior parte do tempo, contudo, não reparei no que figurava no rodapé, nos quadrinhos, na diagramação caprichada do livro, porque não era apenas uma agenda, mas um volume que se pretendia artístico, algo mais que livro de anotações, e nisso começou minha antipatia por ela.

Agora tenho dúvidas sobre o que fazer com as três agendas, se lhes dou destinação própria, se adoto uma personalidade diferente para cada uma e desenvolvo ao longo do ano histórias que transcorreriam em trilhos paralelos, se as esqueço na gaveta ou se faço um uso diverso e ainda não planejado desse tipo de objeto.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d