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A impotência do potente

 

De tudo que leio e escuto em artigos, entrevistas e talk shows engajados, talvez potente seja o que mais incomoda. A exaustão da palavra, sua impotência mesmo, referida sistematicamente e a propósito de qualquer coisa.

Uma fala, uma postagem, uma música, uma tirinha, um vídeo do TikTok, uma receita da avó, uma dança nova, uma tatuagem, um hambúrguer: tudo é potente, dito desse modo cheio de gravidade que pretende fazer do ato mais do que é, de excepcionalizá-lo, conferindo à expressão uma áurea sacra que dispensa comentários e maiores reflexões. Se é potente, é bom.

Me pergunto em que momento o potente se tornou o seu contrário, o impotente, se foi antes ou depois da morte da narrativa. Se ambas vieram a óbito simultaneamente, fruto do mesmo processo de erosão linguístico, qual seja, o abuso do emprego de um vocábulo, despindo-o, ao cabo de tanto tempo, de substância e significação, restando de seu sentido e força originais apenas bagaço.

Com a narrativa deu-se algo semelhante, manejava-se a palavra com alguma graça no início, querendo dizer que uma certa visão de mundo fazia-se passar por verdade de maneira hábil mas cujas conexões e processos artificiosos ficavam evidentes a um olhar mais detido, a um exame mais acurado.

De seu emprego restrito ao universo acadêmico, narrativa, como um bom carreirista, logo fez fama e fortuna nas redes sociais à esquerda, depois à direita, para finalmente morrer na CPI da Covid, onde o senador Marcos Rogério foi o seu coveiro definitivo, aquele de quem se pode cobrar com mais ênfase a responsabilidade pelo assassinato da palavra, já claudicante, já suficientemente depauperada.

Creio que potente ainda tem sobrevida, que escapa, aqui e ali, nas formulações de autores e comentários em lives progressistas, que eventualmente seu uso seja justificado e se encaixe num fraseado que não esteja preocupado apenas em marcar a cartela do bingo da gramática esquerdista.

Mas não tenho dúvida de que seu destino será o mesmo da narrativa: o cemitério dos termos que, de tão cansados, perderam carne, finaram-se, minguando pela recorrência.

De resto, é fenômeno comum no uso da língua, dentro da qual a morte é também presença constante.

Difícil guiar-se no mercado da reflexão sem algumas muletas, sem palavras que carreguem um sentido mais imediato e alcancem mais público, colocando-se numa zona de fronteira entre o explorado e o inexplorado, entre o conhecido e o desconhecido.

Quando tudo passar, 2021 acabar e depois dele 2022 e 2023, lembrarei desse tempo em que narrativa e potente eram lançadas ao vento como confetes num salão de festas de baile de carnaval.

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