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Barthes morreu

 

Outro livro começa: Roland Barthes morreu em 26 de março de 1980. É um fato incontornável. Barthes morreu. A data registrada do óbito é a indicada na página: 26 de março. O ano é 1980. Não há que se discutir. Não existe mistério, tampouco duplo ou triplo sentido. Qualquer jogo de palavras.

Mesmo para um estruturalista, linguista, apaixonado, um escritor, um esteta, tudo que se queira dizer de Barthes, inexiste complexidade na sentença que se anuncia.

Morreu pouco menos de três meses antes de eu nascer. Isso não tem importância também. Cito apenas porque, para calcular esse intervalo entre março e junho, precisei me concentrar e contar nos dedos. Tenho feito isso sempre que a realidade escapa.

Apelo aos dedos, estiro todos os da mão e começo a contar, como se retornasse ao infantil, ao maternal, ao primórdio, esse mesmo tempo do qual minha filha agora vai se despedindo, porque já não precisa do auxílio das mãos para fazer suas operações matemáticas. Usa a cabeça, as ideias, reproduz e projeta sem a encenação do cálculo. Talvez imagine as próprias mãos. Talvez faça continhas com os dedinhos imaginários.

É um tipo de regressão, penso eu. Aos 40, recorrer novamente aos dedos. Como se acometido de um déficit de fabulação. Uma volta à infância, talvez? Talvez.

Barthes morreu, e não há como retornar à bilheteria e pedir de volta o dinheiro do ingresso.

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