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Desafio do silêncio

 

Ao contrário do que pode ter parecido, o desafio do silêncio não consiste exatamente na falta de conversa ou no inteiro mutismo carente de assunto, mas numa prática comunicacional na qual não estejam presentes palavras muito gastas e cujo uso cause aborrecimento supremo e dores de cabeça planaltinas.

Exemplos: presidente ou pandemia, ou presidente e CPI, ou quaisquer outras que, empregadas ou ouvidas de relance, provoquem o mesmo efeito de garfo arranhando o fundo da panela, que entre os cearenses se chama de gastura.

O propósito expresso desse jogo de armar com peças faltando é estimular a imaginação, aquietar o juízo por dez ou quinze minutos, não mais que isso, forçar uma parada nessa necessidade constante e irrefreável de estar permanente e incansavelmente atualizado a respeito de certos assuntos.

Sabem quando os computadores travam e os forçamos a desligar por meio daquele comando? Pois bem. É quase isso.

Experimentem. É simples, talvez não no começo, mas, quando se pega o jeito, o negócio tem seus retornos.

O benefício está claro: permitir que seus praticantes se sintam por um breve intervalo de tempo noutro mundo, que se deixem abduzir nesse hiato por uma força tal que os faça esquecer não que estamos na pandemia, mas de quem nos governa e eventualmente de ambos.

Tentem. Ao acaso ou não, encontrem alguém presencialmente, mantidos todos os protocolos, ou, se não for possível, apelem ao Zoom. Nesse evento privado, físico ou virtual, tratem de ninharias, de coisas banais ou nem tão banais, mas sem usar aquelas duas palavras.

Falem de animais de estimação, de piercings ou tatuagens, de séries ou de bebida, de corrida ou natação, de sexo ou da falta dele, de uma atividade nova ou de um futuro incerto que se anuncia numa viagem sem destino.

A cor da parede do quarto, exercício físico recém-aprendido, receita de comida, videogame, dor de cotovelo, um disco novo, enfim. Tudo isso por magros 15 minutos, apenas.

Antes do meeting, reiterem promessas um ao outro de que, aconteça o que acontecer, não deixarão que as duas palavras riscadas, que podem ser essas duas mas também outras, azedem a conversa durante esse tempo, após o qual a ordem das coisas pode se normalizar, o mundo voltar ao eixo e o véu se rasgar, deixando entrever que se estava na verdade encenando uma peça.

Mas, como toda boa ficção, os ganhos são incalculáveis. Além do mais, é medida sanitária também, eu garanto. Espécie de saneamento espiritual, higienização mental.

Um cuidado que se toma nestes tempos em que, mal acordamos e até o final do dia, o chorume vazado é suficiente para fazer funcionar Itaipu em potência máxima com o mundo inteiro de ventilador ligado no 5.

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