Eu tive uma irmã. Está escrito numa bíblia antiga que minha mãe comprou quando ainda éramos crianças, de modo que o livro tem praticamente a minha idade, ou talvez seja mais velho.
É um volume robusto, de letra graúda, com reproduções de pinturas renascentistas, mas cuja capa estragou-se com o tempo, e por isso o trouxe para casa, a fim de restaurá-lo e guardá-lo comigo, como artefato capaz de ligar minha história à de minha mãe e, de alguma maneira, à do restante da família, como um elo artificioso que tenho de fixar para que tudo não se perca em vazio, para atenuar essa sensação de que a deriva é nossa origem comum, e não uma casa ou cidade.
Na folha de rosto da bíblia, no local destinado a anotações pessoais, a mãe escreveu nossa data de nascimento, nome e filiação, além da data de casamento: setembro de 1979. Cláudia nascera em 1º de maio de 1981. Eu não sabia ou não recordava que hoje era o seu aniversário. A irmã faria 40 anos, igualando-se a mim por um período curto que talvez nos divertisse. Teríamos ambos essa idade até o meio do ano, quando eu a deixaria para trás. Uma diferença de 11 meses.
Digo isso pra mãe, que entra no quarto para apanhar uma foto mas não a encontra. Nela, descreve minha mãe, Cláudia está numa bacia e eu ajudo a banhá-la segurando uma mangueira de jardim que despeja água. Temos quatro anos, talvez cinco, a idade em que ela morreu. Cláudia sorri, as bochechas grandes e rosadas e os olhos estreitos. Reconstruo a imagem de outras vezes em que a vi, das tantas em que passei por essa mesma foto sem que a sua ausência fosse um peso.
Ela está por aqui, vou procurar depois, a mãe responde, dando o assunto por encerrado. Peço que me avise quando encontrá-la. Em seguida, enfio a bíblia empoeirada numa sacola e vou pra casa.
Mas Cláudia vem comigo, está a meu lado.
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