Pular para o conteúdo principal

Naturalizar o vácuo

Alguém disse que é preciso “naturalizar o vácuo”, ou seja, a resposta não dada não de modo deliberado, mas não intencional, resultado do acúmulo de demandas, de mensagens em múltiplas plataformas por 24 horas, num diálogo que não se interrompe em qualquer momento do dia.

Então me veio à cabeça que hoje estamos sempre devendo algo a alguém, por todo canto levamos essa agoniada sensação de que temos de responder e dar continuidade a alguma comunicação cujo início já perdemos, mas que segue suspensa, numa aflitiva lacuna que fica guardada num cantinho do juízo.

Um retorno, uma confirmação, seja de email ou mensagem de Whatsapp, no Instagram ou Facebook, um comentário numa caixa, uma ligação não atendida para a qual ainda não temos devolutiva à altura e por isso a estudamos mais um pouco, mas é justo esse "pouco" que causa estridência e produz ruídos. Não há tempo para espera.

O fato de que exista um sem número de modalidades de interlocução apenas potencializa às alturas também os labirintos e becos sem saída, as hipóteses de silêncio e eventualmente os desentendimentos. Tudo fruto, certamente, de um adiamento, de um pensamento do tipo: responderei depois.

Esse depois hoje é impensável porque nem mesmo no imediatismo do agora é possível esgotar essas incontáveis janelas que se abrem e alertas que sinalizam para um novo diálogo.

Daí o déficit permanente de relação, um sentimento de que faltamos sistematicamente com os outros, um pedido de desculpa previamente engatilhado na ponta da língua caso alguém nos aborde e pergunte sobre aquela resposta que ainda não lhe demos.

Qual a saída para esse círculo do inferno contemporâneo? Assumir que a oferta de conversa superou desde muito nossa capacidade de estar em todos os lugares, mesmo virtualmente, e, como se diz, “naturalizar o vácuo” educado, o esquecimento, o trabalho do inconsciente e do recalque da memória.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas