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Envelheço na pandemia

Vasculhava a estante à procura de sabe-se lá o quê quando parei numa foto da festa junina da escola da minha filha em 2019. É uma imagem recente, reconheço a camisa que usava. Tudo nela ainda se mantém fresco.

Mas pareço outra pessoa. Mais jovem, menos cabelo branco, mais sorridente, menos pesaroso do que hoje. Desconfiado, tento me convencer de que era o ângulo, a luz, o filtro, mas sei que não era.

Ninguém da família havia morrido até então. Nunca ouvira falar de Covid, tampouco de vacina ou de cloroquina. Tinham se passado apenas seis meses de governo Bolsonaro. Eis a diferença entre o eu de agora e aquele.

Menos de dois anos depois, tenho a sensação de que envelheci mais do que esses pouco mais de mil dias. Envelheci mais do que supunha que envelheceria, do que costumo envelhecer de um ano para o outro, mais do que os 40 anos completados em meio à quarentena fazem crer.

Vou ao espelho confirmar essa teoria. Checo a raiz dos cabelos, inspeciono rugas, mapeio a fronte e o alto da cabeça cuja calvície se acentua hora a hora, quase em tempo real. Tateio os braços mais flácidos e a barriga mais protuberante, dou saltos para saber se as pernas guardam vigor. Sou o mesmo, mas numa versão desgastada, como se exposta por muito tempo ao sol e ao vento, ao poder corrosivo do cotidiano.

É um dos corolários da pandemia, digo a mim mesmo, os vivos maltratados e os mortos empilhados, tudo equivalendo-se em algum momento.

Sinto um fastio enorme de estar neste tempo, habitá-lo assim, desarmado, acumulando traços de sua passagem, de não saber como proceder. Uma fraqueza, como nos dias em que acordo e resisto a acordar, os dias em que toda energia se esvai muito antes de que decida gastá-la para o mais básico, para o corriqueiro das atividades, e mesmo escrever é instrumento falho para o tamanho da desgraça. 

Como o computador em ruína, vivemos um momento de "tela azul", quando as funcionalidades (reparem na palavra) se danificam, tudo o mais entra em colapso e para o restante é necessário empenhar grande esforço, canalizar uma concentração exagerada, destinar um sem número de cápsulas de atenção.

O resultado é exaustão, cansaço. Essa suspeita de que trocamos de corpo e somos um outro, como no filme de ficção científica, aquele dos anos 1970 em que uma entidade biologicamente extraterrestre inocula nas gentes um vírus que as faz quase maquinal, destituída de empatia, afastadas do convívio ou, pior, irmanadas por um elo de morte.

Por isso retive essa foto de 2019 nas mãos por mais tempo. Troquei-a de lugar, deixando-a na sala, por onde passo sempre e onde não há maneira de estar sem vê-la em algum momento do dia ou da noite.

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