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Eu, monetizado

Monetizar a autoimagem, fazer da exposição um ganha-pão, intercambiar essas demonstrações de si e disso obter talvez recurso, cobrando pelo acesso a quê? 


Não sei, cada um que escolha aquilo que terá de pôr à venda, já que é algo caro, o mais íntimo, o corpo, o trabalho, dicas de exercício em tempos de pandemia, o aconselhamento, não mais o site, o blog, mas o privado –as horas de sono e o sexo, o beijo e o gozo. 

Paga-se pelo que for, são tempos de necessidade e projeção em que esse capital migra do físico para o não-físico, se entendo bem o que se passa agora.

Cada um é sua marca, sua empresa, sua mensagem anunciada pela qual é de supor que recebam algo em troca, num escambo contínuo e agora sem fronteiras.

Esperava-se sempre que o capitalismo fosse longe, colonizando a Lua e Marte etc., levando a fábrica ao intergaláctico, mas já chegou bem distante, talvez o mais distante que se possa imaginar. Chegou dentro, fundo.

Dispensável qualquer convencimento, hoje trabalha-se e monetiza-se com orgulho, é um valor de exibição – tudo mediado, a conexão assegurando de partida a entrada no universo da troca.

Uma intimidade financeirizada posta em anúncio – feito por mim, concebido, imaginado e apresentado.

Esqueça-se o patrão, a lei trabalhista, qualquer um desses dispositivos antigos que regulavam as relações, um aparato facilmente identificável em qualquer livro porque já exaustivamente categorizado.

Faz-se tudo hoje sozinho e de bom-grado, sem dar com o mecanismo que conecta a neoservidão com o cotidiano, que passa como novidade, um dado da vida digital ou coisa parecida.

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