Não conheci o meu avô, na verdade nenhum deles, de modo que falar de suas memórias é desde o início uma declaração de mentira que convida a ler não o que viveram, mas o que suponho que tenham vivido a partir dos pedaços de histórias que fui pescando ao longo da vida, trechos de relatos de minha avó, fiapos de conversas de adultos na cozinha que ouvia distraído ao passar para o banheiro.
Ou cartas que, sem querer, descobri um dia numa caixa de sapatos debaixo de outras caixas no armário da mãe. Nelas um tio se refere ao pai apenas como “ele”, nunca pai ou papai, como meus primos o chamavam agora e como eu jamais chamei o meu próprio pai, numa demonstração excessiva de carinho e respeito. Em casa nunca fomos nem uma coisa nem outra, mas ásperos, indiferentes e ocasionalmente afetuosos.
Por que as cartas do tio estavam em posse de minha mãe, isso é algo que talvez eu lhe pergunte antes de terminar tudo, quando o vazio que existe houver sido preenchido por uma fabulação, qualquer coisa que se preste a ocupar esse braço da vida, como um galho que falta e ao qual dou uma importância exagerada, seja porque preciso entender como eu mesmo cheguei aqui, seja porque, nesse exercício, faço-me também matéria de um exame que começa nesses corpos inexistentes de homens a quem não conheci e cujos rostos me esforço por adivinhar, se eram brincalhões ou severos, por quais cidades viajaram, quantos filhos tiveram com outras mulheres, em que dia morreram e se morreram de fato ou perambulam por aí, sem dar com o buraco num fio que, de repente, se interrompe.
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