Pular para o conteúdo principal

Fuga para o futuro


Como um fantasma, esse amigo reapareceu hoje. Falou comigo, quis saber como estava, então disse que todos moravam na mesma rua, os três sobre quem eu havia perguntado. Nas mesmas casas? Sim.

Seguiu-se uma breve conversa, ao fim da qual eu me despedi secamente e o amigo me deixou uma última mensagem com o seu número de telefone. Pediu que ligasse. Eu não liguei. Tampouco voltei à rua onde morei quando tinha dez anos.

Lembro da casa. Um quintal amplo com cajueiro e bananeira. Na frente o jardim. Dentro os quartos e o banheiro único onde examinei o próprio corpo esticar-se e uma penugem florescer aos poucos. Tardes mornas, os pais trancados, primeiro aos gritos, depois o silêncio que se consumia por horas, numa dinâmica de brigas e afagos que apenas depois de adulto eu entenderia. Brincávamos no corredor, derrubávamos o que tinha valor, enfezávamos uns aos outros, e assim os dias se sucediam.

Finalmente, havia a rua. Era uma rua estranha e selvagem. A vizinhança como a Nápoles de Elena Ferrante: por muito pouco apanhava-se. A violência era o hábito, e todos vivíamos à mercê das surras que levávamos, seja porque tínhamos mergulhado no rio sujo que corta o bairro, seja porque eu havia desaparecido durante toda a tarde, enfiado no mato ou jogando bola.

Éramos três ou quatro amigos: o filho do mecânico, o filho do garçom, o filho da costureira. Tratávamo-nos assim, reduzindo-nos desde a partida e limitando nosso horizonte de expectativas ao que nossos pais eram naquele momento, subempregados e operários.

Havia também o “sem pai’. Dizíamos isso com a intenção de magoar, evidentemente: lá vai “o sem pai”. Hoje me envergonho que fôssemos tão cruéis. Naquela época, era uma trivialidade. Mais de trinta anos depois, eu, o pai de uma menina a quem caberia explicar sem palavras a minha ausência caso eu faltasse por qualquer razão.

Mas, como eu disse, era um lugar com suas próprias regras, e não raro à violência dos adultos se juntava a nossa própria violência, replicando aquele mundo de homens valentes que se estapeavam jogando no campo de futebol. Agredíamo-nos com frequência – do mais forte ao mais fraco, do mais velho ao mais novo, do mais antigo no bairro ou no grupo ao recém-chegado.

Eu era o recém-chegado. Havia desembarcado da mudança num caminhão não fazia duas semanas. Não estava feliz. Deixara uma casa num lugar muito longe dali, um quintal igualmente amplo, uma cozinha apertada, o quarto dividido com meus pais e o jardim da entrada repleto de plantas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...