Nesta semana sonhei com a vó, ou
achei que tivesse sonhado, ou gostaria de ter sonhado com ela, não faz tanta
diferença assim. O fato de ter desejado sonhar com a vó e sonhar com ela de
verdade são no fundo a mesma coisa, ou seja, a expressão da necessidade de
conversar com a vó, ainda que em vida a gente não tivesse esse tipo de conversa
que só temos com os mortos, entende? É esse o papel dos mortos, ouvir os vivos
e permanecer em silêncio até que essas palavras se espiralem e dissolvam no ar
feito fumaça de cigarro subindo devagar.
Sonhei que sonhava com a vó e ela
só fazia que sim ou que não com a cabeça, como num jogo de mistério no qual
lançamos perguntas e precisamos de pistas para chegar até as respostas. Era
isso que a vó fazia, indicava os caminhos através dos quais eu deveria ir, mas
sem realmente se comprometer, de modo que aquele corredor escolhido era
inteiramente meu e não dela, aquela porta que eu abria era a porta que eu havia
apontado.
Nesse sonho a vó não perguntava
sobre o pai nem sobre minha filha, que ela não conheceu. Na verdade acho até
que ela se entediava um pouco porque não tinha tanta coisa pra fazer agora que
morrera, então ficava nesse estado de semiconsciência suspensa enquanto as
coisas se desenrolavam noutro plano. Ou no mesmo plano, não sei. Mas não era
como se ela apenas estivesse numa rede se balançando, como ela gostava de fazer
e onde eu a encontrava sempre que ia até a casa da minha mãe. E de onde ela
caiu e fraturou a perna e depois morreu por complicações que até hoje não entendo muito bem.
Talvez tenha sido isso. Eu
esperava sonhar com a vó porque eu não lembro de ter me despedido da vó, ou
seja, quando ela morreu eu já não ia à casa da mãe havia alguns dias, e então,
quando ela me telefonou para dizer que a vó tinha caído ao tentar se deitar, eu
realmente não sabia de mais nada sobre nossa última conversa. Ela me
puxou num canto do quarto e disse que tinha sonhado com meu tio.
Meu tio morreu num acidente de carro.
Ele dirigia um Fusca quando bateu de frente contra um poste. Eu tinha uns 16
anos, talvez mais, não lembro, e o que mais me impressionou nessa história foi que o tio
saiu do carro ainda vivo, olhou a parte avariada do veículo e depois sentou no meio-fio da
estrada que liga as duas cidades, a nossa e a cidade onde ele então vivia com
outra mulher e outros filhos. E só então morreu.
Escondemos a morte do meu tio
da minha vó por quase um mês, até que um dia ela ergueu-se da rede muito
alvoroçada e andou até a sala num passo claudicante. Nesse dia estávamos todos
ali conversando depois do almoço. Meu pai contava histórias do pai dele e de
antes do pai dele, porque eu sempre pedia que ele me dissesse como eram os
homens da nossa família. Eu não sabia como eram, eu só conhecia a mim e a meu
pai, jamais havia encontrado os avôs. Foi nesse instante que a vó se aproximou
e disse que tinha sonhado com o tio e que ele lhe contara que havia morrido, e
num fôlego apenas, sem parar pra ouvir nenhuma explicação, perguntou por que a
gente tinha escondido a morte do filho dela por quase um mês.
Sentada, minha
mãe soluçou e meu pai virou o rosto para o outro lado. Meus irmãos eram crianças ainda, então continuaram a fazer o que estavam fazendo sem se preocuparem com o que
acontecia. Acho que só eu olhei pra vó fixamente.
Notei que ela chorava um pouco, nada muito copioso, era um filete discreto de lágrima que caía, talvez mais pela raiva que sentia agora do que propriamente pela tristeza que passara a sentir por causa da morte do filho que ela mais amava e que jamais a haveria de visitar novamente, como sempre fazia a cada quinze dias.
Notei que ela chorava um pouco, nada muito copioso, era um filete discreto de lágrima que caía, talvez mais pela raiva que sentia agora do que propriamente pela tristeza que passara a sentir por causa da morte do filho que ela mais amava e que jamais a haveria de visitar novamente, como sempre fazia a cada quinze dias.
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