Pular para o conteúdo principal

Nem todo homem

Nem todo homem responde que nem todo homem é um lixo, mas quase todo homem que diz que nem todo homem é um lixo é de fato um lixo, o que nem seria uma rima, tampouco uma solução.

Nenhum homem deveria fazer uso frequente de uma expressão genérica segundo a qual nem todo homem comporta-se como sabemos que é a postura regular de qualquer homem, mas todo homem, ao menos uma vez na vida, já se defendeu de alguma crítica dizendo que, veja bem, “nem todo homem” isso ou aquilo.

A verdade é que a gente sabe que todo homem, sim, eu, você e aquele outro muito desconstruído, mantém um padrão de atitude moral e eventualmente sexual que faz jus ao predicado ao qual é comumente associado: o lixo.

Alguns são recicláveis, outros são radioativos e um terceiro grupo é totalmente inservível, ainda que a mulher ou o homem insista em empregá-lo para qualquer coisa. No geral, porém, todo homem, incluindo-se no saco nem todo homem, costuma frequentar um desses três espectros de lixeira pelo menos de vez em quando.

A diferença é que nem todo homem tem coragem de assumir que é igualzinho a qualquer homem do tempo do seu pai ou do seu avô. E então fica repetindo coisas bonitas no Whatsapp e aprendendo bordado nas feiras de artesanato, como se isso fosse suficiente, mas, na primeira oportunidade, age como qualquer homenzinho, tenha você 1,60 metro ou dois.

Como a maioria dos machos que atacou essa menina que joga videogame e acabou perdendo um patrocínio importante depois de se cansar de ser assediada e dizer que todo homem é um lixo. E o que fizeram os homens? Agiram como lixo e pressionaram a empresa que a bancava (uma companhia também lixo) a romper o contrato, até onde acompanhei essa história.

Cito esse episódio porque ele deixa claro para mim que o que todo homem tem de entender urgentemente é que repetir que nem todo homem faz isso ou aquilo não cola mais como justificativa. De modo que temos duas escolhas: ou ficar calado no cantinho da disciplina por um ou dois anos e aprender com tudo que está acontecendo. Ou então admitir que, como todo homem é como qualquer homem, o melhor é começar desde já a fazer alguma coisa.

Nesse caso, todo homem passaria a ajudar esse grupo especial formado por “nem todo homem” a não ser mais uma exceção à regra geral, que é muito cruel e violenta com todos, mas a quebrá-la e a estabelecer um novo patamar do que é ser um homem.

Entende? Se todo homem for minimamente inteligente, perceberá logo que esse lugar de fala de “nem todo homem” é uma condição com a qual não pode se satisfazer, porque isso não é motivo para se orgulhar. Pelo contrário, ainda que você consiga realmente provar que é o único homem na face da Terra que não é como qualquer homem que a gente conhece, isso seria uma constatação profundamente triste.

O que resta a fazer, portanto, é parar de investir na excepcionalidade desse homem único e especial que não é como qualquer homem (mas no fundo é) e gastar mais tempo reparando no que faz de todo homem um potencial candidato a lixo. Experimente isso, seja você um homem ou alguém como nem todo homem.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d