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Dançar é sorte


A vida tem movimentos. Coisas básicas, como na dança. Um passo pra lá e outro pra cá, um ritmo lento que demarca o deslocamento.

Ciclos, essas coisas. Ora isto, ora aquilo. Tem gente que recorre às ondas ou à conformação das nuvens no céu para entender o que se passa afinal, o que de fato acontece quando a vida se põe a rodopiar.

É um mistério o fato de que certas coisas aconteçam, e, acontecendo, se deem dessa maneira e não de outra, ganhando essa cara e não aquela.

Por exemplo: um dia, nesta hora, noutro lugar, sob certa luz etc. Um pra lá e outro pra cá. Como na dança, às vezes mais empurrados que conduzidos, mais presos ao chão que flutuando.

Não sei por que cargas d’água comecei a pensar nos movimentos. Talvez porque hoje seja sábado, um dia bom pra dançar. Não sou dançarino nato. Eu engano.

Estudo atenciosamente os corpos e os gestos, em seguida tento imitar, acrescentando alguma característica minha, algo que talvez pareça ridículo mas que, visto com um pouco de boa vontade, certamente serve pelo menos para que algum conhecido me encontre com facilidade no salão.

Ali está ele e o seu repertório limitado de passos de dança.

Então é isto.  Um ritmo compassado. Andando pelo calçadão às nove da noite, o mar salgando o vento, a lua muito alta, o fluxo rumoroso de pessoas numa coreografia de improviso.

Dançar é uma sorte. Pra lá e pra cá.

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