Pular para o conteúdo principal

Primeiro escrever, depois ler


Sim, as caixas. Apenas ontem terminei de desembalar o último pacote de livros e comecei a organizar as coisas na estante depois de uma temporada com a vida bagunçada e essas páginas todas espalhadas pelo chão de casa.

É a primeira vez que falo sobre isso. 

Talvez não devesse dar tanta importância ao movimento pendular de corpos e ao rearranjo que os sentimentos acabam provocando, mas o fato é que estou aqui disposto a abordar um assunto cuja complexidade de repente me pareceu possível de ser vencida de algum modo ainda impreciso.

E então passei a desembrulhar tudo e a retirar cada pequeno objeto contido nas caixas, como se apenas agora me devolvessem algo precioso sem o qual eu não poderia voltar a andar sem tropeçar.

Caixas guardadas por quase todo o ano, lacradas com fita isolante e esquecidas num canto da sala.

Caixas grandes e pequenas, quase todas estampando alguma marca de xampu ou de laticínio, mas que não guardavam nem produtos de beleza nem iogurtes.

Caixas com livros, muitos dos quais nunca lidos, parte deles sem a menor importância.

O espólio de uma guerra, exatamente como as tralhas que os fugitivos deixam pra trás quando os bárbaros estão às portas da cidadela e todas as defesas já ruíram e não resta nada senão tentar escapar por dentro da floresta numa corrida desesperada.

É sobre essas caixas que estou falando aqui, não quaisquer caixas, mas apenas essas que hesitei em abrir, caixas que permaneciam fechadas durante todo esse tempo, caixas que queimavam se eu as tocasse com as mãos nuas, caixas como ossadas encontradas por uma missão arqueológica que depara com outra vida assentada sob camadas e mais camadas de solo.

Caixas que foram e voltaram.

Uma história sobre essas caixas seria necessariamente uma história sobre a minha vida posta em caixas que vão e voltam, num movimento cíclico cuja proporção eu precisaria calcular com alguma fórmula matemática básica.

Caixas, apenas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d