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Pedra


Depois de tudo, já fechei e abri, guardei e tranquei, isolei a sete chaves e mantive distante da vista. Como um calendário de um ano que passou sem passar, expirou no ar. Mais palavra que gesto.

 Depois de tudo ainda precisei andar sozinho. Um dia, na praia, fui até aquelas pedras. No começo não gostava de imaginá-las empilhadas sob sol tanto tempo, pedras sobre pedras dia e noite.

 Até que fui me afeiçoando. E da pedra voltei com sacos plásticos, garrafas, despojos de visitas alheias que não vi se ficaram ou foram embora.

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