Pular para o conteúdo principal

Dark (parte 1)

Por onde começar?

Dark é dual desde o princípio, a gente sabe. Os diretores sabem, os atores e a Netflix também. De modo pouco sutil, a abertura produz essa leitura, com paisagens e personagens dividindo-se e espelhando-se, num efeito de fractal. Tudo se bifurca, e cada divisão conduz a uma narrativa diferente. 

Em algum momento, esses caminhos se cruzam, como nas melhores histórias de Italo Calvino. O tempo é um castelo com múltiplos corredores. Na literatura e no cinema, esse é um tema explorado exaustivamente: o da multiplicidade de veredas. Culpas, passado, tudo esconde uma porta que leva a outro universo, num efeito de mergulho em abismo.

Os caminhos percorridos, entretanto, nem sempre são os melhores e mais seguros. A tentação de consertar tudo e colocar as coisas de volta no lugar pode ser nada menos que desastrosa. Uma parte considerável da nossa vida simplesmente resiste a ocupar o seu devido lugar, ora porque não sabemos que lugar é esse, ora porque os lugares onde desejamos encerrar nossos incômodos acabam se revelando muito apertados e cheios de frestas. 

Logo, o passado emerge constantemente no presente, e o futuro se mostra quase sempre como resutado dessa interação entre o que volta e o que fica. 

Tudo isso é preâmbulo. Em resumo, Dark ocupa-se disto: o que aconteceria se futuro, presente e passado formassem a mesma matéria passível de mudança? O que seria de nós se pudéssemos nos movimentar livremente através dos anos, de maneira a alterar o curso dos acontecimentos segundo interesses próprios ou não? Corrigiríamos erros? Eliminaríamos acertos? Interviríamos quando achássemos que estaríamos fazendo algo bom para uma coletividade, pra nossa família?

Uma questão de fundo é moral, obviamente. Fazer a coisa certa é um desafio que agora extrapola o presente e se estende também ao passado. É claro que potencializa a angústia de homens e mulheres que já carregam seus fardos pra lá e pra cá, cuidando em fingir que está tudo bem.

Fazer a coisa certa, porém, tem implicações não apenas incertas, mas imprevistas, e o que pode parecer mais correto em um contexto torna-se violento em outro.

O relativismo do espaço-tempo, assim, transborda para o campo das atitudes e da ética – cada personagem ou grupo de personagens acumula culpas e segredos que, aos poucos, são desvendados. O que é certo, o que é errado? 

O que é presente, o que é passado? Qual é a linha central da vida de cada pessoa? É possível embaralhar eventos tão díspares? Há um fio que liga o destino de todos?

Análise: parte 2 e parte 3

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas