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O meio

Olhar pra longe de si.  Olhar pra fora. Não é como se fosse uma regra. É um exercício saudável recomendado por dez entre dez escritores mas cuja prática usualmente ignoramos. Olhar pra fora não equivale a enxergar-se sob o ponto de vista de outra pessoa. Olhar pra fora é ver o que não podemos sendo nós mesmos. É escrever o que talvez nos assuste.

Escrever depois das 22 horas é como estar numa festa depois das 4 horas da manhã e sentir de repente que a hora certa de ir embora havia sido cerca de três horas atrás, exatamente entre a vontade de discar um número específico no celular e a de virar mais uma cerveja no gargalo. Isso não é um adágio popular.

Reli parte do que escrevi entre os 20 e os 23 anos. Não é algo que recomendaria para uma noite de sábado. Mas até mesmo arrancar um dente deve ter lá os seus momentos divertidos, de genuíno prazer e felicidade que justifiquem toda essa dor e falta de sentido. Mas talvez não esse.  

Quando fiz minha conta no Twitter, em 2008 ou 2009, escrevia numa folha em branco e depois transpunha aquilo para o computador. Só depois é que publicava no site. Era um método artesanal de produção numa era que inaugurava o império das redes sociais. Hoje, escrevo todos os meus textos no corpo do email, inclusive reportagens que assino, menos os exercícios que publico no blog. Não é tão difícil de entender.

Há em tudo uma vontade de extravio. É como se, dispondo daquele espaço, a escrita se contaminasse com uma qualidade fundamental  do meio – a transitoriedade. Mais que isso, é como se cada artigo, por bobo que seja, tivesse um destinatário. E, finalmente, é como se pudesse simplesmente perder cada palavra gasta na tentativa de explicar algo que nem eu mesmo entendi.  

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Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d