A maioria das
pessoas subestima o poder do deslocamento, mínimo que seja. Recordo um episódio
de infância. Quando minha mãe alterava a configuração dos móveis, colocando o
sofá no lugar onde antes estava o armário e a mesa agora contra a parede, a TV
noutra parte da estante, a estante de costas para onde costumava ficar, uma
cortina fora do lugar, a mesa de centro num ângulo inusitado etc – quando fazia
isso, algo mágico acontecia.
De repente, a
casa parecia outra, e nós, uma família diferente da que éramos. Vivíamos uma
euforia sem explicação durante uma ou duas semanas, após as quais os novos objetos
começavam a se encaixar na rotina da casa. E a casa, que era outra, passava a
ser nossa mais uma vez. Não sei se minha mãe tinha noção disso. O que a levava
a operar essa alquimia doméstica? Que algoritmo governava o seu senso estético?
São perguntas que nunca tenho tempo de fazer porque passamos a maior parte das
horas discutindo sobre como cada coisa chegou aonde chegou, e rindo de tudo.
Não sei por
que lembrei dessa história agora, hoje, um sábado banal como tantos outros
depois de uma tarde modorrenta de sono e pratos xícaras sujas de café . Sei que
todo deslocamento gera essa zona de incerteza sobre o papel que desempenhamos e
a identidade das pessoas que nos cercam. Sei também que mudar as coisas de
lugar pode ser divertido, quase como um jogo, e todo jogo pressupõe funções que
se intercambiam no curso do tempo. Sei que gostava de ver TV na casa nova
depois de cada pequena mudança. Era como se fosse o filho de outra família. Então,
lá estava eu, vendo e sendo visto ao mesmo tempo, o filho de sempre e um novo
filho morando no mesmo corpo. A nossa casa virava um teatro. Embora não
soubéssemos, era teatro o que fazíamos.
Tudo porque
alguém tinha resolvido tirar o sofá do lugar de sempre.