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Um avião

Ultimamente tenho pensado sobre isso de dançar agarrado ou então sobre o preço de estacionamentos ou a formação das chuvas no nordeste. Vivemos o quinto ano seguido de seca. O que isso quer dizer?

O que isso deveria querer dizer?

A gente mora na capital. Na capital não falta água. A gente convive lateralmente com a falta d’água. Essa aridez é apenas vestígio. Todo o restante segue à margem da falta, que é dissimulada. É a dupla falta: do bem e do símbolo que a designa. É um achatamento da experiência e da linguagem, que se contenta com a perfumaria, enquanto a experiência recalca ou disfarça ou transforma a falta num adorno, que continua lá, potencialmente danoso.  

Penso numa palavra avulsa como seca, qualquer uma, solta na frase, uma palavra-conceito que mais anuncie que explique, que mais confunda que aclare. Mas, isto são exercícios, ensaios de ensaios de quem não pretende sair do lugar, ainda que pareça longe e avançando no tempo.  

Explicações estão fora de moda, ouvi na festa. Invejava o adolescente com uma garrafa de vinho virando na garganta. Ao mesmo tempo, desconfiava da minha inveja de adulto. Não era autêntica. Não invejava de verdade. Invejava a ideia que fazia de mim mesmo vinte anos atrás numa festa como aquela. Vinte anos atrás, eu não estaria numa festa como aquela. Tampouco com uma garrafa de vinho. Vinte anos atrás, as chances de que olhasse para mim mesmo numa festa onde jamais estaria e invejasse o adulto que jamais me tornaria eram remotas. Logo, a inveja engana não apenas como sentimento, mas como realidade. 

A gente deseja não apenas o objeto, mas o que acredita desejar naquele objeto, e, entre um e outro, às vezes vai uma distância razoável. Um oceano inteiro de pequenas diferenças.

Logo, desconfiei de que o melhor a fazer naquele momento era tentar prestar atenção à música e ao casal que dançava abraçado num ritmo que eu definiria como intenso e difícil de interromper.

Um PS. Estou à paisana enquanto escrevo.

São as duas paisagens mais fortes da janela: o estádio e o aeroporto. De um vejo luzes acesas em dias de jogos. Do outro, apenas os pousos e decolagens, de pequenos, médios e grandes aviões. O maior já visto até hoje: uma aeronave holandesa que foi obrigada a pousar em Fortaleza. Não lembro a razão.

Apenas que, na hora da decolagem, eu estava olhando pela janela. Era imensa. É estranho deparar com um objeto que extrapola a escala do dia a dia. Implodiu a lógica da tarde.   

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