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O fim do mundo

Eu vi o fim do mundo. Foi ontem de noite, sonhando, acho que durou uma hora, talvez um pouco mais, talvez um pouco menos. O apocalipse, mas sem os zumbis. Sete bolas de fogo caindo. Um mundo aberto, como nos jogos de videogame. Vento. A tirania do vento forte. 

Montanhas ao longe, nenhuma casa. Uma paisagem falsamente rural. Nada de rural existe ali.

O céu se abre, e eu penso: vai fazer sol. Estava nublado, mas agora vai fazer sol. As esferas despencam. Sete, ao todo, enterradas em lugares diferentes. 

Eu caminho em direção a uma delas, toco a esfera, que se mantém intacta nas minhas mãos. Brilha, mas não queima.

Tenho dúvidas se é mesmo o apocalipse cristão ou o fim do mundo laico, se tem algo a ver com deus ou com um desastre ambiental, uma fúria divina ou uma barragem que se rompe e do alto vem a lama como bólidos cruzando tudo.

Mais uma: estou vivendo tudo isso ou jogando tudo isso?

Repito: vivendo ou jogando? De longe, alguém olha e sorri pra mim. É como se dissesse: as duas coisas. Acredite, as duas coisas. Sigo.

O sonho termina sem que saiba se se trata disso ou daquilo. Tenho apenas a certeza de que vivo finalmente o fim do mundo, que, para surpresa ou decepção, é parecido com o fim que todo mundo imaginou um dia. 

Então apanho outra esfera nas mãos. Não queima. Acende como uma tela de celular no meio da sala escura do cinema. Quase cega.

Acredite, não é o fim do mundo, diz uma voz lá de dentro.  

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