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"Estação Atocha", de Ben Lerner



Eu poderia ter grifado muitas passagens de “Estação Atocha” (Rádio Londres) na tentativa tortuosa de, pelo acúmulo de trechos interessantes, talvez inesquecíveis, convencer de que vale a pena ler o romance. Mas quase nunca grifo um livro, exceto quando me sinto particularmente deslumbrado. E o romance de estreia de Ben Lerner é deslumbrante do início ao fim. Logo, teria de marcá-lo inteiro. Uma única reta que percorreria as pouco mais de 200 páginas. Trabalho ocioso.

Um bolsista de literatura perambula pela Espanha em 2004. Enquanto fuma maconha misturada a haxixe e mente compulsivamente, vai tentando desatar os nós que elabora, seja na poesia, seja nos relacionamentos. Basicamente, é isso.

Mas sobre o que é o livro?

Arrisco: é sobre a batalha entre o autêntico e o falso. Sobre o avatar que criamos para acomodar as expectativas e ideias postiças que temos sobre nós mesmos e as escolhas que tomamos para sustentar esse edifício de aparências. E a resultante disso.

É um livro tristemente divertido e alegremente melancólico. 

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