Pular para o conteúdo principal

Uma cena

Tinha esse casal na praia. Vários casais, mas esse era especial.

Estava perto da ponte antiga. A nova parecia lotada e de fato estava cheia.

A velha continuava como sempre esteve, uma estrutura prestes a desmoronar, livre, viva como um animal antigo cujo nome ninguém lembra.

Era um casal adolescente. Não se beijava, permanecia abraçado olhando pro mar.
Passava das cinco?

Passava.  Os surfistas aproveitavam as ondas, muita gente encostada na mureta esperando o sol descer para ir embora e colecionar mais um por do sol.

Havia esse cheiro forte de pipoca e maresia, e o arrulho das pedras no fundo das águas rolando devagar pra lá e pra cá se misturava ao murmúrio vindo da caixa de som numa lanchonete. Uma música bonita, triste mas bonita, acho que da Roberta Miranda.

O homem sentado pediu uma cerveja, depois bebeu e ficou acenando para alguém fora do quadro.   

Não era Roberta Miranda, era uma música em francês e eu não entendo nada de francês.  

Como esse casal jovem, acho que ela tem uns dezesseis e ele um pouco mais que isso, mas posso estar enganado e na verdade ela ter 20 e ele 15 ou ela 30 e ele 20.

As pedras, lá e cá, cá e lá, como alguém que se prendesse à cauda de um tigre.

Mas quem se arriscaria a tanto?

Na vastidão do mar, esse dois pra lá e dois pra cá das pedras é zero. É como andar dois passos no espaço. Não tem efeito algum.

O casal parado então se levanta e se beija. É um beijo inesperado, não calculado. Roubado?

O casal segue em frente. Andam de mãos na cintura um do outro, apertando-se a cada passo, desajeitados como um produto ainda não testado, um experimento humano – o humano acoplado ao humano que ninguém sabe no que vai dar, exceto por uma ou outra opinião de especialista avisando que se pode esperar qualquer coisa desse arranjo mambembe.  

Caminham com dificuldade, estão felizes e têm dinheiro para um saco de pipoca, então compram pipoca, mas com manteiga, ela avisa.

Pipoca, pedras e o casal perto da ponte enquanto os surfistas etc.

A ponte velha como as coisas sem préstimo que a gente continua a usar. 

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...