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Fiando-se



Desconfie de todo gesto sacrificial, esse que se reveste de uma áurea humana inatacável, que apela à oração mais íntima e se aninha num cadinho da alma tão escondido que acaba embolorando com o tempo.

Desconfie da bondade, mas só da bondade que usa paetês e plumas e sai à noite fantasiada para chamar a atenção de quem passa – a bondade despida, crua, essa que usa chinela de dedos e come de colher, pode continuar a admirá-la.
É verdadeira.

Desconfie dos bons sentimentos, mas apenas dos bons sentimentos que pregam anúncio na porta de casa informando: vendem-se bons sentimentos.

Desconfie de quem está sempre a falar do outro e quase nunca de si mesmo. Esconder o egoísmo, dissimulando-o ou tentando convertê-lo no exato oposto, o altruísmo, é tão ou mais escroto que admiti-lo. Tudo que é autêntico, até o egoísmo, é mais aceitável do que o falso, incluindo a preocupação.

Desconfie de quem detesta gente desconfiada ou faz de tudo para não desconfiar.

Desconfiar é um ato humano.

Quase tão humano quanto odiar ou perder.

Desconfie de quem foge da negatividade como o diabo da cruz.

Desconfie de quem acredita mais no azul do que no vermelho.

Desconfie do excesso e da falta, da demora e da pressa, do silêncio e da loquacidade.

Desconfie de quem escreve e de quem escuta.

Desconfie de quem se doa e de quem se nega.

De quem ama e de quem desama.

Desconfie de quem acredita na simplicidade e de quem torna tudo mais difícil.

Desconfie de quem, ao escrever, tenta fugir dos opostos, ou dos antípodas, ou das margens, preferindo o caminho do meio.

Desconfie de quem diz que o caminho do meio é sempre a melhor opção.

Desconfie da felicidade.

Desconfie da mãe, do pai, do filho e de quem mais estiver na sala.

Porque só quem desconfia pode acreditar no que quiser. O pio não tem opção. Está fadado à crença. É sua configuração padrão.

Já o descrente, esse pode tudo. 

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