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Trinômio doméstico



Bom, mas, pensando bem ou não tão bem assim, empregar o tempo ou otimizar o tempo ou ainda extrair do tempo a melhor parte, como se se procurasse sempre o sumo das coisas, nunca se satisfazendo com casquinhas ou lasquinhas.

Aproveitando cada momento com atividades proveitosas, numa continuidade de prazer que se segue à busca. Isso tem algo da ética protestante do capitalismo. 

Segundo essa lógica, desperdiçar o tempo com um livro a fim de entender melhor a vida dos outros seres humanos, o que inclui a sua própria – isso é uma coisa bacana? Talvez não.

Melhor seria aprender outro idioma ou melhorar o desempenho em algum jogo no celular ou mesmo amar e brincar ainda mais com os filhos ou alugar uma casa de praia no fim de semana. A vida é curta.

Tenho minhas dúvidas em relação às dúvidas das pessoas que não têm dúvidas quanto a essa dimensão pragmática da vida.

 Academia, família, trabalho, lazer e, se possível, um pouco de espiritualidade (mandalas ou coisas do tipo), quem sabe uma aventurazinha ali, outra acolá – uma sucessão maquinal de atividades cujo propósito se encerra em executá-las bem e no tempo destinado a cada uma, retirando delas o máximo de prazer no melhor custo-benefício. A vida organizada segundo os preceitos do Excel e dos algoritmos do FB.  

E quanto a isso também tenho muitas dúvidas.

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