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Ainda o tempo



Ainda o mesmo assunto, que não é exatamente o mesmo, mas o mesmo visto com outros olhos, uns olhos assim já meio desconfiados de tudo porque enfim tenho cá meus 34 anos e um pouco de cada fase da vida permanece e cada pessoa que conheci também, de maneira que até o que parece igual soa diferente e o diferente, igual, e digo isso bem sério, sem rir, mas escondendo um sorriso canhoto no canto direito da boca. Tão difícil a vida quando é séria.

 Interrompi tudo que estava fazendo, quer dizer, tudo que estava lendo, e sobre isso quero escrever depois, a fragmentação da escrita, da atenção, da leitura, tudo na vida servido em caquinhos, pequenas porções de coisas, prazeres em miniaturas e por aí vai, como se ninguém mais tolerasse a longa espera de 500 páginas e a demorada ausência da desconexão. Parar pra ler soa tão aberrante.

Um mês. Inteiro. Dedicado. A um livro. Por vez. Sem pressa.

Esse tempo passou.

O tempo de agora é outro.

Interrompi o que estava fazendo porque finalmente o volume 3 das memórias do Knausgard chegou às livrarias e da livraria até minha casa foi um pulo.

Então estou aqui, lendo jornais e artigos e ficando assustado com tudo que tem acontecido e também com o que não tem acontecido e agora que vai chegando junho, e nesse mês tem festas juninas, as coisas ganham essa dimensão afetiva insuspeita.

Estou assim olhando esse drama de quase três mil páginas, um drama ordinário, e chamá-lo minha luta é quase tão engraçado quanto chamá-lo cogumelo ou qualquer outro título sem relação com o conteúdo.

Estou aqui lendo as notícias, encarando o livro, já querendo não terminá-lo, porque sei que vai acabar rápido, é até menor que os dois anteriores, menos de 500 páginas.

E o tempo que ele consome é incrivelmente menor que qualquer outra atividade, como ler artigos e ficar por dentro do que acontece na vida do país.

Ler o Knausgard é como ficar por dentro, dentríssimo, da vida de qualquer pessoa. 

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