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Ressaca



Antes de ontem o mar estava encrespado. Em frente ao Estoril, a antiga Vila Morena, na Praia de Iracema, a ressaca formou um mosaico de matéria orgânica e inorgânica. Restos de embarcações, fragmentos de alvenaria e carcaças de animais foram cuspidos de volta pela força das ondas a despeito da parede de pedras dispostas a fim de conter o bravio das águas.

Quem foi ao calçadão viu fragmentos do Mara Hope misturados a conchas e esqueletos de peixes mortos há muito tempo. Viu blocos de cimento, algas e plástico flutuante finalmente aportar em terra depois de meses ou anos navegando pra lá e pra cá. Espalhadas, as peças constituíam um quebra-cabeças de cuja resposta a cidade depende para seguir adiante.

É como tentar enxergar na borra do despojo recusado pelo mar algum futuro para Fortaleza. Nele, a depender do que cada um queira pinçar, se pedra, madeira ou coisa viva, o desenho no horizonte se modifica como essas nuvenzinhas que se desfazem mal a olhamos. 

Minha cidade é assim: mal a olhamos, está diferente.

Gosto de adivinhar sentido na escassez de recursos e inventar modos de felicidade na combinação de peças avulsas que o mar faz chegar. Não gosto de ressecar as fontes e desertificar a vida em derredor apenas de olhar. Apenas de olhar, tudo deveria ser potência, e não o contrário. Apenas de olhar, a generosidade, e não o cinismo ou a migalha.  

Vista do calçadão num dia de ressaca furiosa, Fortaleza é mais viva do que parece. 

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