Até hoje não entendo aquele fosso do desenho do He-man, uma queda livre, uma lonjura sem tamanho, um cânion de onde ninguém saía, tampouco caía. Num desenho infantil dificilmente uma pessoa, ainda que vilã, seria castigada tão cruelmente assim. Mas a queda estava lá, parada, a meter medo.
O fosso
foi minha primeira experiência com o infinito. Antes de haver deus, havia a
queda livre. A ideia de algo tão fundo que, mesmo que passasse a vida inteira
caindo, jamais chegaria ao final. O tempo suspenso.
Daí
que fosse inapropriado falar simplesmente final. Era mais um despencar contínuo
solitário, uniforme e inapelavelmente vertical.
Pensando
bem, até que não seria ruim. A eternidade em queda. Um tipo especial de
inferno. Um inferno pras crianças malcriadas.
O He-Man
gostava das lições de moral ao fim de cada episódio. Começava assim: na
história de hoje, nós aprendemos... Assisti-lo, logo, pressupunha um evangelho:
amizade, respeito, camaradagem. A lista de boas ações do príncipe bobão que se
transformava num halterofilista altruísta era imensa.
A queda,
entanto, era sequer referida. Ninguém a abordava, lateral ou frontalmente. Estava
lá, mas era como se não estivesse.
Uma queda
pela eternidade. Uma lonjura sem tamanho, eu arriscaria explicar, tendendo
primeiro ao redundante, segundo ao desconhecido, terceiro ao enigmático.
Dispensável
dizer que a grande distância se mede com a mesma régua da menor distância. A metrificação
é a linguagem comum. A queda livre do desenho animado que via aos cinco anos e
depois aos seis e aos sete não obedece a essa lei.
Foi
quando percebi que algo estava errado. Que nem tudo está explicado. Que a
realidade traía as palavras.
E é
tudo que consigo lembrar do He-man.
Obs:
tentei encontrar uma imagem do abismo do desenho, mas não consegui. Inventei? É
possível. Outro dia descobri que um dos meus amigos de infância na verdade não
existiu e que boa parte das cenas que vivi durante um tempo foi ou criada
enquanto dormia ou aconteceu com outras pessoas.