Pular para o conteúdo principal

Enquanto via televisão

E antes de sair disse só mais uma coisa, e foi como se essa coisa aparentemente banal anulasse todo o resto. Foi exatamente assim, a única coisa que importava exposta ali, como ao acaso, depositada ou largada sem rigor, uma peça extraviada de uma nave espacial. É só isso que tenho pra falar, concluiu, talvez num tom exageradamente teatral, talvez a sério, o acréscimo que punha tudo a perder. Basta que uma frase mal compreendida ganhe vida e então tudo está por um fio.

Ficou calado, esteve calado por todo esse tempo sem saber por que permanecia calado ainda que tudo em redor o convidasse e mesmo o intimasse a falar, a fornecer informações sobre si mesmo que depois seriam usadas para compor um perfil. Era isso, as pessoas gostam de se assegurar de que estão falando com alguém cujo perfil conhecem e não com um estranho que a qualquer momento pode acrescentar um significado imperceptível ao final de uma frase, pondo tudo a perder. Não entendia por que apenas ao fim de tantas frases é que se dava conta de que o que tinha a acrescentar era o que realmente queria dizer desde o início, mas isso já muito para sua cabeça preocupada com as contas e outras bagatelas do cotidiano. A gente começa pelo fim, arriscou uma sabedoria popular da qual imediatamente se arrependeu.  

Pediu licença, tomou água, checou as mensagens no celular e em seguida foi embora. Parou na calçada, alguém acenava. Acenou de volta. Era o amigo do trabalho que ia passando, ou que achava que ia passando, um homem de gravata e terno num calor do meio-dia. Não suava. 

Que estranho, pensou, e então pediu licença novamente e segredou à primeira mulher que viu na rua o que vinha guardando esse tempo inteiro: as últimas palavras não significam nada além de que são acrescidas depois de tudo, e depois de tudo nada mais importa.

Só mais uma coisa, repetiu enquanto a mulher afastava-se com uma mão adiante como a dizer, por favor, prefiro evitar pessoas que me abordam na rua e dizem o que lhes vêm à cabeça.

Ele entendeu, e reatou o passo pela segunda vez. Até perceber que já era noite e em casa faltava comida. E que tal se eu for ao supermercado e passar algum tempo na seção de frios?

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...