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Já disse isso outras vezes, começou a palestra, eu dormia na poltrona porque tinha seis pessoas ainda pra falar e só depois é que começaria a parte divertida, com bebida e comida e uma música tocando em volume alto, eu esperava que sim. O auditório tava lotado, muita gente da pós e uns grupos barulhentos da graduação.  

Já disse que a gente escreve pra tocar algum ponto, eu concordei mentalmente, e esse ponto ninguém diz qual é, continuei concordando. Até que fiquei ouvindo apenas, sem pensar nada, a voz dela como um carpete cobrindo o chão da sala.

Escreve como mineração, escrever é principalmente uma atividade extrativista.

Vejam que ninguém sabe onde está o mineral, então vamos cavando e martelando e quebrando, daí alguns pedaços de solo se desprendem mas ainda não é o que a gente procura, na verdade nem a gente mesmo tem certeza de como é de fato esse mineral que procura, exceto que precisa procurar e procura.

Cava e cava, martela, martela, quebra, quebra, sopra, sopra, bate, bate.

De repente está num buraco, tem um buraco ao redor, tudo é um buraco feito por nós, ninguém percebeu, eu não percebi, mas o buraco é realmente grande e poucas pessoas sabem como foram parar ali, apenas que estão lá e continuam a cavar e bater e martelar e soprar e procurar esse mineral estranho que pode ser ouro, mas duvido que seja porque ouro é até fácil encontrar, diamante também, mas esse mineral, se é que é um mineral mesmo, pode ser um animal ou um vegetal, o caso é que, independentemente de ser uma coisa ou outra, não tenho tanta certeza assim de que será fácil encontrá-lo.

Não tenho certeza sequer de que exista, enfatizou a palestrante, e talvez por isso escrever seja tão cansativo como é cansativa qualquer atividade extrativista.

Nessa hora eu dormi e só acordei quando a plateia aplaudia e ela sorria e nos cabelos tinha um pó branco que acho que era raspa do mineral que ela tanto procurou a vida inteira. 

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