Pular para o conteúdo principal

Esquecimento



Imaginem algo nunca feito. Nunca feito não quer dizer nunca imaginado. Como artista, a especialidade de Eliasson é fazer essas coisas que outras pessoas imaginam mas, por alguma razão, não fazem nunca.  

O que mais gosto no Eliasson é essa tentativa de capturar a vida num discurso grandiloquente que extrapola as escalas de objetos cotidianos, criando um efeito de vertigem e alucinação em plena luz do dia.

Água, ar, fogo, luz, terra. Paisagens remontadas, a vida em suspenso, o elemento refratado, quebradiço, exposto, a natureza sujeitada a uma métrica humana, o simulacro do selvagem.

Um sol mortiço aprisionado na sala, um córrego atravessa as paredes de um museu, uma escada serpenteia em direção a lugar nenhum, um feixe de luz se desmembra.

O artifício recria a vida e a vida recria-se no artifício.

O Eliasson é uma paisagem artificial.

Mas um artificial diferente, a lembrar que a vida corre ali, ao lado, enquanto tentamos quantificá-la, empacotá-la e servi-la para viagem.

Às vezes tenho a impressão de que a obra do Eliasson é um pedido encriptado para que a gente jamais esqueça de algo que a gente não pode esquecer. E que, salvo engano, já esquecemos. 

É assim que me sinto quando vejo um córrego percorrendo cascalhos no meio de um cômodo de pé direito alto ou um arco-íris circundando um corredor. 

Tentando lembrar de algo que já esqueci.

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d