Os amigos Alain, Charles, Ramon e D'Ardelo se reencontram numa Paris onde as filas para apreciar Chagall dobram a esquina e moças de saia e blusa curtas exibem o umbigo, o que sugere um deslocamento do centro erótico. Antes, pernas, coxas, bunda e seios. Agora, o indiferenciado orifício, o mesmo em qualquer mulher. Alain se pergunta, subitamente melancólico: "Como definir o erotismo de um homem (ou de uma época) que vê a sedução feminina concentrada no meio do corpo?"
Quatorze anos depois, é assim, metaforizando a importância do umbigo no mundo, que Milan Kundera, 85, volta ao romance. Em A festa da insignificância, o escritor tcheco naturalizado francês explora um assunto já experimentado por Mario Vargas Llosa em A civilização do espetáculo: a natureza rarefeita da cultura em nosso tempo e o aparente rodamoinho de trivialidades em que a sociedade se meteu, sem dar mostras, segundo os dois autores, de que poderá escapar tão cedo.
No romance, lançado pela Cia. das Letras em edição caprichada, com tiragem de 10 mil exemplares e capa dura, o autor de A insustentável leveza do ser mergulha quatro amigos em uma espiral doméstica de banalidades ambientada em uma cidade cuja fama é, ironicamente, a de epicentro da ilustração do espírito. Escrito em prosa leve, pontuado por um humor filosófico, o livro inclui um personagem que obtém deleite especial fingindo ter câncer e outro que, embora ator, diverte-se mesmo é trabalhando em coquetéis do grand monde parisiense e ouvindo piadas sobre o folclore em torno da vida de Stálin.
Eis a nota opressiva, parece dizer Kundera. Limitada ao anedótico, a vida de Stálin representa não o regime de exceção, como em A insustentável leveza do ser, mas o peso da frivolidade e da desvalorização, marcas de uma cultura que se confunde com o entretenimento.
Se em A grande beleza, filme de Paolo Sorrentino, o mal-estar contemporâneo se evidencia o tempo inteiro no fastio do escritor de sucesso Jep Gambardella, incapaz de escrever outro livro enquanto abraça uma vida de hedonismo, em A festa da insignificância, porém, a ressaca é diluída no cotidiano. Representada pelo umbigo, o centro assexuado de uma cultura encantada com a autoimagem, estende-se por páginas e páginas de uma escrita límpida e exuberante, como as paisagens de Roma e Paris em contraste com as vidas de Jep e de Alain, Charles, D'Ardelo e Ramon.
Em A civilização do espetáculo, Vargas Llosa fareja esse cataclismo silencioso. Apresentado como uma "radiografia do nosso tempo e da nossa cultura", o livro reúne ensaios sobre artes plásticas, cinema, literatura e jornalismo. Num deles, o escritor conclui: "Parece-me que essa deterioração (da cultura) nos mergulha em crescente confusão, da qual poderia resultar, no curto ou longo prazo, um mundo sem valores estéticos, em que as artes e as letras - as humanidades - teriam passado a ser pouco mais que formas secundárias do entretenimento". O que talvez explique as longas filas para ver Chagall.
SERVIÇO
A festa da insignificância (Cia das Letras)
Autor: Milan Kundera
Preço: R$ 36 (136 páginas