Imaginem olhar e enxergar não a paisagem
exata ou as pessoas vestindo as cores que decidiram usar naquela manhã ou
naquela tarde, mas um simulacro, uma aproximação mentirosa, algo como a
distorção do que já é distorcido, o que também não é nenhuma novidade, não o
verde ou o azul, mas o verde filtrado, o azul filtrado.
Imaginem uns óculos com esses filtros fazendo
a triagem não somente dos raios nocivos aos olhos, mas também de um espectro de
cores. Imaginem esses óculos distribuídos em larga escala, imaginem as crianças
agora usando esses óculos, imaginem as mães e os pais, as tias e os avós – o filtro
que cada um escolher determinará também o que cada um vai enxergar.
Passem agora ao futuro. Dentro de 100 anos
o filtro não será mais de cores apenas, mas de camadas inteiras da realidade,
pedaços da vida, zonas da cidade. Imaginem formatar uma cidade. A minha
fortaleza. Customizar áreas da realidade, transformá-las conforme gostos e
poder aquisitivo. O que não queremos, que não desejamos, tudo isso estará fora,
o filtro cuidará, um filtro para pessoas que não pretendo ver, outro para
climas ruins, um terceiro para problemas que não me dizem respeito, um quarto
para sentimentos que estou tentando evitar e por aí vai.
Filtros por toda parte, nas lojas e camelôs
na praia, nas calçadas do Centro e nos cinemas, filtros com design estilizado,
futuristas, retrôs, filtros de época, filtros sépia, filtros com gatinhos e
flores para datas comemorativas, filtros com fundo musical melancólico. A popularização
do filtro como a quarta onda tecnológica.
Até que ninguém saiba mais como era quando
a gente tinha essa deficiência de enxergar apenas o que estava diante dos
olhos.