Pular para o conteúdo principal

Inventário



O inventário das coisas ausentes, novo romance da Carola Saavedra, que livro.

Não porque embaralha os registros ficcionais e biográficos, ou autobiográficos, ou ficcionais sutis e ficcionais escancarados, cada vez mais me confundo quanto aos limites da autenticidade, os limites da ficção, os limites.

É bom porque sugere não apenas que inventamos histórias a partir do que não existe, mas inventamos as histórias que existiram, inventamos continuamente, quer os fatos tenham existido, quer não.

Não cessamos de inventar. Inventamos e roubamos. Inventamos uma narrativa para cada passado, inventamos um passado diferente para cada etapa da vida, inventamos mesmo quando acreditamos não inventar. 

É bom porque os registros, inventados e reais, podem se encontrar em algum momento do desenvolvimento das histórias, mas podem também passar ao largo uns dos outros, sem jamais deixarem de integrar a mesma história, sem jamais confluírem harmonicamente para um final.

É bom porque sugere que a mesma história são muitas histórias e nenhuma história e até a aparente contradição é parte importante da engrenagem que articula as histórias, inventadas e reais, e porque demonstra que o elo entre as histórias é quase sempre resultado de uma ficção.

É bom porque não temos certeza se o que está escrito é a anotação do narrador, a memória do narrador, a memória de quem narra a vida do narrador. 

É bom porque parte de um enredo simples (um jovem encontra uma jovem, Nina, de 23 anos, que lhe entrega 17 diários e desaparece).   

A mesma história contada muitas vezes, de diferentes formas, partindo de pontos de vista diferentes, chegando a resultados desiguais. O livro também é bom por isso.

Finalmente, é bom porque a Carola, como ninguém, consegue falar sobre amor sem patinar na pieguice nem perder força na elaboração da linguagem, um dos pontos fortes do romance. 

É bom porque trata do amor, e quer prova maior do real imaginado do que esse sentimento?

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d