O problema
todo era uma “cicatriz de vacina”, disse o médico, uma dessas bem comuns,
redondas ou arredondadas, que praticamente nascem com a gente ou quando
percebemos estão lá desde sempre, uma marca no braço esquerdo ou direito, a sua
é no direito, a minha é no esquerdo, mas isso na verdade não importa tanto, apenas
que fica a meio caminho do cotovelo e do pescoço, um anúncio barato informando
ao mundo que a partir dali fazemos parte disso tudo, um atestado de humanidade,
por assim dizer, dor aguda perdida num tempo em que não retínhamos memória de
nada, carinho, choro, fome, sede, o que sentíamos imediatamente perdia-se no
limbo das sensações vividas a cada dia e cada dia era novo não por força da
vontade mas por imposição do corpo.
Uma cicatriz de vacina, repetiu, agora mirando algum ponto na parede, ironia da vida, mal nascemos e já precisamos nos precaver contra a vida, não exatamente contra a vida, argumentei, contra a vida mesmo, protestou o médico, a doença é parte dela, a morte é parte, a morte, sim, mas talvez a doença não, a cicatriz é a prova disso, prosseguiu como se não tivesse me escutado, a da vacina não é diferente das tantas marcas no joelho, perna, couro cabeludo, supercílio, tudo resultado de quedas ou tombos de bicicleta ou objetos que despencam do guarda-roupa e dão de encontro ao rosto, sim, concordei, tenho uma no pé, outra no braço, mas a da vacina é diferente, continuou, ninguém lembra dela, ninguém sabe explicá-la, ninguém tem com ela qualquer relação, sabemos apenas que está lá, quase tão natural quanto ter cabelos e dois olhos e uma boca e um pau ou boceta é ter uma marca redonda de vacina grudada no braço como um adesivo de loja que não saísse depois do banho, uma marca original, como se algum bicho houvesse mastigado um pouco a nossa carne e depois cuspido fora, e pareceu refletir sobre a imagem que havia criado.
Curioso que a primeira cicatriz seja também uma dor para a qual não tenhamos uma história e sobre a qual não possamos dizer nada exceto que está associada a essa marca vulgar de vacina, não acha?, e receitou então o remédio para a irritação nos olhos que vinha sentindo havia uma semana, talvez duas, não lembro direito.
Uma cicatriz de vacina, repetiu, agora mirando algum ponto na parede, ironia da vida, mal nascemos e já precisamos nos precaver contra a vida, não exatamente contra a vida, argumentei, contra a vida mesmo, protestou o médico, a doença é parte dela, a morte é parte, a morte, sim, mas talvez a doença não, a cicatriz é a prova disso, prosseguiu como se não tivesse me escutado, a da vacina não é diferente das tantas marcas no joelho, perna, couro cabeludo, supercílio, tudo resultado de quedas ou tombos de bicicleta ou objetos que despencam do guarda-roupa e dão de encontro ao rosto, sim, concordei, tenho uma no pé, outra no braço, mas a da vacina é diferente, continuou, ninguém lembra dela, ninguém sabe explicá-la, ninguém tem com ela qualquer relação, sabemos apenas que está lá, quase tão natural quanto ter cabelos e dois olhos e uma boca e um pau ou boceta é ter uma marca redonda de vacina grudada no braço como um adesivo de loja que não saísse depois do banho, uma marca original, como se algum bicho houvesse mastigado um pouco a nossa carne e depois cuspido fora, e pareceu refletir sobre a imagem que havia criado.
Curioso que a primeira cicatriz seja também uma dor para a qual não tenhamos uma história e sobre a qual não possamos dizer nada exceto que está associada a essa marca vulgar de vacina, não acha?, e receitou então o remédio para a irritação nos olhos que vinha sentindo havia uma semana, talvez duas, não lembro direito.