Texto publicado no caderno de aniversário do jornal O Povo.
Pelo chão é que se conhece de verdade, pelo chão é que me conheci. Pelo chão encontrava minhoca para peixes, caneta, cédula graúda, despojos de brinquedos. Pelo chão caía e lacerava joelho e cotovelo, magoava feridas já supuradas, rastejava em brincadeiras de guerra. Pelo chão engordava sonho de beijar na boca. Pelo chão, meu e da metrópole, fui cinzelando um corpo e sopesando a justeza dos sentimentos.
Pelo chão é que se conhece de verdade, pelo chão é que me conheci. Pelo chão encontrava minhoca para peixes, caneta, cédula graúda, despojos de brinquedos. Pelo chão caía e lacerava joelho e cotovelo, magoava feridas já supuradas, rastejava em brincadeiras de guerra. Pelo chão engordava sonho de beijar na boca. Pelo chão, meu e da metrópole, fui cinzelando um corpo e sopesando a justeza dos sentimentos.
Pelo chão se conhecem pessoas, humores
e doenças da cidade. O chão sabe ao que trazemos e ao que escondemos. O chão
não se alheia; o vento tampouco o enverga. É mais largo que oceanos, mais
denso que a luz. Porque homens e mulheres esfarelam num punhado de memórias
quando o próprio corpo degenera, às vezes o chão é o amor que resta.
Estão enganados todos os que respondem:
a pele. O maior órgão do corpo é o chão. É a lonjura atravessada num dia ou
numa noite. É morada e experiência. É a vida curtida no desvario das rotinas e a
marinada nos gozos e ardores. O chão é o lado mais para fora do que temos de
mais dentro. É amparo, distância, estrada. É desassossego e o que falta.
O chão nunca é em falso. Nós é que,
empurrados pra lá e pra cá, desequilibramos. Nunca nos ultrapassa, nós é que,
preguiçosos ou apressados, desemparelhamos do tempo. Nunca trai os pés, nós é
que, seguros de já dominarmos toda a ciência, tombamos. E, como a encorajar,
está sempre a dizer que o limite para sonhos não é outro senão o próprio chão.
Gosto de espalhar pernas e braços pelo chão,
vencido pelas asperezas ou pelo cansaço. Gosto do chão vadio do Centro e do chão
asséptico do shopping. Reservo amor a quem dança rente ao chão e vive de se ofertar,
gesto sacrificial de amorosidade e entrega. E quando nada é conforto, gosto de
entrar no mar e fingir que sob os pés não há mesmo um chão, apenas infinito e
onda.
Não gosto do chão que medra o medo,
lavrando abismos entre mim e o alheio, obliterando caminhos, semeando
cercaduras. Gosto do chão desembaraçado da nódoa de mesquinhez e da afronta.