Pular para o conteúdo principal

Um pouco antes do café



Há dias em que a gente acorda e não reconhece o próprio rosto. A gente se olha, eu me olho, e o que vejo não parece em nada comigo, não sou eu, mas outro que, da noite para o dia, tomou o meu lugar, alguém com o mesmo nariz, a mesma boca, orelhas iguais, queixo, cabelos, entradas, olhos, o mesmo cinza ou o mesmo castanho e a mesma leve assimetria no alinhamento das sobrancelhas, uma mais baixa que a outra, e assim o corpo inteiro, ombros, mãos, joelhos, pés, e então lembro que mesmo o solado dos sapatos se desgasta de formas diferentes, um mais inclinado que o outro lado, e depois, como uma coisa se enrosca em outra, a boca.

Quando quero estranhar-me, olho a boca, um lábio derreado, o esquerdo, sempre. Todo um lado esquerdo do corpo diferente do direito, toda uma banda, um hemisfério, como se duas notas musicais em tons diferentes ou lados de um planeta ou como se, no ato da montagem, o responsável houvesse se distraído e, ao perceber a besteira que tinha feito, soltasse: opa, esse ficou um pouco torto.

Um pouco torto.   

O outro encara-me. É outro, diz. É parecido, não há como negar, mas é um outro cuja passividade ou agressividade não são as minhas, nada ali é meu e tudo não veio de outro lugar senão de mim.

É quando tomo o primeiro susto de uma série de pequenas tormentas entre o despertar e o café da manhã. Hoje é quinta-feira, 27 de março de um ano que certamente se confundirá com outro em algum lugar do futuro e o próprio futuro com outro futuro e com outro e com outro. 

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...