Há dias em que a gente acorda e não reconhece
o próprio rosto. A gente se olha, eu me olho, e o que vejo não parece em nada
comigo, não sou eu, mas outro que, da noite para o dia, tomou o meu lugar,
alguém com o mesmo nariz, a mesma boca, orelhas iguais, queixo, cabelos,
entradas, olhos, o mesmo cinza ou o mesmo castanho e a mesma leve assimetria no
alinhamento das sobrancelhas, uma mais baixa que a outra, e assim o corpo
inteiro, ombros, mãos, joelhos, pés, e então lembro que mesmo o solado dos
sapatos se desgasta de formas diferentes, um mais inclinado que o outro lado, e
depois, como uma coisa se enrosca em outra, a boca.
Quando quero estranhar-me, olho a boca, um
lábio derreado, o esquerdo, sempre. Todo um lado esquerdo do corpo diferente do
direito, toda uma banda, um hemisfério, como se duas notas musicais em tons
diferentes ou lados de um planeta ou como se, no ato da montagem, o responsável
houvesse se distraído e, ao perceber a besteira que tinha feito, soltasse: opa,
esse ficou um pouco torto.
Um pouco torto.
O outro encara-me. É outro, diz. É parecido,
não há como negar, mas é um outro cuja passividade ou agressividade não são as
minhas, nada ali é meu e tudo não veio de outro lugar senão de mim.
É quando tomo o primeiro susto de uma série
de pequenas tormentas entre o despertar e o café da manhã. Hoje é quinta-feira,
27 de março de um ano que certamente se confundirá com outro em algum lugar do
futuro e o próprio futuro com outro futuro e com outro e com outro.