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Duas bolas de sorvete, por favor



Quando a gente quer opinião, no fundo, o que a gente quer mesmo? A gente quer elogio. Bom, você pode até disfarçar, negacear, esconder o jogo, mas é isso mesmo. Dificilmente a gente quer outra coisa além do elogio, e só de vez em quando consideramos a sério a hipótese de que a crítica vai contrariar nossas expectativas. Nessas horas, sentimos doer bem lá no coração aquecido do nosso orgulho. 

Raramente estamos preparados para o pior: nosso trabalho é ruim, e nada do que dissermos ou fizermos vai mudar essa realidade. Dizer que foi o melhor que pudemos fazer não é uma desculpa. Dizer que foi o melhor que pudemos fazer é um tapinha nas costas que damos em nós mesmos para que possamos continuar a fazer o que temos de fazer. E isso não é pouco. 

De modo geral, porém, estamos intimamente convencidos de que nosso trabalho, seja ele qual for, merece, senão todo o aplauso, ao menos algum, e se ele não vem, logo desconfiamos das intenções, das arapucas, da maldade atávica do ser humano, da índole maléfica dos críticos etc.

Um escritor brasileiro, não sei se o Daniel Galera ou o Bernardo Carvalho, costuma advertir: lembre-se de que nada no mundo garante que alguém esteja interessado no que você tem a dizer. Nada garante que o que você tem a dizer é importante. E, no mais das vezes, ter alguma coisa a dizer só tem real valor para quem diz. Em resumo: cuidado com a vaidade.  

Mas todo cuidado ainda é pouco e frequentemente nos vemos, a nós e aos amigos, atolados até o pescoço nas pequenas vilezas do cotidiano. É uma merda quando isso acontece, e não há nada que a gente possa fazer a respeito além de olhar e pedir duas bolas de sorvete. 

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