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Sustos



De repente começamos a falar sobre o que nos assusta. O mar, eu disse. Grandes animais, ela respondeu. Velhos e palhaços, devolvi; salas iluminadas. 

Salas iluminadas, repetiu.

Mas é claro que não acreditei e não apenas isso, entendi essa mentira ou exagero como uma senha para que a partir dali disséssemos a primeira coisa que viesse à cabeça, representasse perigo ou não, fosse absurda ou não, afinal o medo não carece justificativa, ele simplesmente é e continua sendo por muito tempo. 

Abajures. Ri. 

Abajures? 

Tenho medo também de tampas de panela e jarras de suco pela metade e portas de guarda-roupa que não fecham direito e telas de computador que escurecem sem explicação. Uma série de eventos domésticos para os quais a física ou a matemática ou a biologia não tem uma teoria. 

Fico terrivelmente assustada quando encontro meias pelo avesso e controle remoto sobre almofadas e cortinas que não esvoaçam ainda que esteja ventando.

E assim estivemos a manhã inteira, mentindo um para o outro. Escondi o verdadeiro medo que tenho do mar, de tudo que o mar sugere, tudo que o mar não mostra mas que está lá, em algum lugar, ondulando. Tubarões de mentirinha nadando a dois metros dos surfistas, baleias jubartes, cachalotes, peixes antediluvianos. Não acredito em deus, mas acredito no mar e o respeito e quando vou à praia me junto aos velhotes no raso, a água pela cintura. 

Pensam que não gosto do sal da água, que talvez tenha algum trauma, que não confio no que não posso prender. Talvez estejam certos, e o medo seja uma desculpa, a melhor que encontrei. 

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